terça-feira, 3 de junho de 2008

mensagem de sua excia o administrador

temos de repensar este blog. proponho uma reunião/jantar ou reunião/reunião para o próximo fim de semana. por enquanto estamos de férias.

domingo, 1 de junho de 2008

Esquiçou como uma louca, buscando aquelas formas que brotavam incessantes na sua mente, numa explosão de sinapses, até ao mais ínfimo detalhe, sem que conseguisse materializá-las. Recomeçou dezenas de vezes o mesmo desenho, aos primeiros riscos pressentia que errava a escala, as dimensões, a ideia. Frustrada, deixou-se cair pesadamente para trás, o tapete relvado abraçou o seu abandono.

"Aquela casa era eu... "

As paredes, que tinham esperado a sua presença para enfim, ruirem, sugeriam-lhe uma epifania. Solta dessa formalização física, a sua alma expandia-se, prescrutava o mundo, as coisas de sempre com olhos novos, as coisas novas como se sempre tivessem sido.

Liberdade...

Não mais procuraria albergar o mundo em si. O movimento contrário parecia-lhe agora muito mais evidente.

Liberdade....

Voltou lentamente para o carro, a papoila na mão, o coração cheio de cravos e etiquetou numa gaveta da memória o dia em que me descobri casa.

FIM

sábado, 31 de maio de 2008

Fiquei coberta de pó e desorientada a princípio, como num regresso instantâneo à infância, quando tinha ataques de pânico e falta de ar. Desmaiei. Acordei, arrastei-me mas caí numa pequena depressão no solo. Com pouco mais de 1,5 m de profundidade. Desmaiei de novo. Sonhava então. Raios de sol perscrutaram as minhas pálpebras e acordei, depois de duas horas. Abri primeiro o olho direito sondando o local onde me encontrava.”Raios!, vou sair daqui, fartei-me! E hei-de descobrir o caminho. Que se lixe! Não havia retorno possível. Assim as coisas avançam".

Limpou o musgo e pegou numa papoila que resistia ao vento mas não resistiu àquele vigoroso puxão. “ Vou levar-te para te secar e para te espalmar na última página do caderno de esquiços”. Tira-o do chão e ,ainda meio atarantada, decide-se a encetar o seu projecto….

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Saí a correr, apavorada. Apenas tive tempo de, a uns cem metros da casa, vê-la ruir em minutos.

Perplexa, percebi:
- Aquela casa era eu....

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O arco da porta principal voltou a atravessar-se por cima de mim. O fumo elevava-se da calçada que cobria o chão do vestíbulo, como se uma chuvada se tivesse abatido sobre ela após ter sido fustigada por um sol tórrido. Mas naquele findar de dia nem uma gota de água ali pousara e o frio entrava ossos dentro. Baixei o cigarro da boca até ao luxuriante musgo que me dava pela cintura, para largar um pouco de cinza, e o fumo desapareceu.

“Tens de ir ao oftalmologista!” – agoiro sinistro que me carregou a mente, por um bom par de minutos, e que me feria os tímpanos todas as noites quando ia dormir e escutava, através da mal construída parede, a mulher do vizinho a chagar o marido. Nem aqui, neste recanto perdido entre a Fajã de Baixo e a Fajã de Cima, se Ponta Delgada me deixa em paz.

Uma voz emudecida pelos séculos germinava por entre o musgo da prateleira descaída para o lado esquerdo que havia sido particularmente calejada pelo tempo. “Três reis morreram, três reis morreram…” – consegui discernir ao levantar um velho número do Açoriano Oriental que apodrecia sobre ela. “Suponho que não sejas rei, porque os mortos não falam e isso aqui é muito húmido para ser Alcácer-Quibir.” – retorqui-lhe, para logo ser arrebatada pela dissipação da dúvida que há muito me corroía: “Já não precisas de aspirar a que o teu vizinho te faça bonitas odes na Internet, como em tempos fez à Madame Büttant, podes fazer a ti própria as melhores odes do mundo.”

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Musgo sedoso formava um manto na base onde, imaginei, tivesse havido uma prateleira. Devagar, passei a mão e comecei a imaginar que vidas teriam ali guardado que segredos, que tesouros, que prendas, que mistérios. Puxei do bloco e do lápis e comecei a desenhar. Freneticamente, enchi folhas de traços delicados, perspectivas vigorosas, decorações pujantes.
Acendo um cigarro. Regresso calmamente ao carro.
Olho para trás mais uma vez. E nessa altura reparo no mais importante.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Andei mais alguns metros por entre aquelas memórias perdidas. Senti-me quase conduzida por mão invisível e estaquei sem querer junto a um nicho naparede. Teria sido outrora um armário mas agora nada mais do parecia que um buraco casual. Inclinei-me melhor para ver.

domingo, 25 de maio de 2008


Conduzia o mesmo trajecto de todos os dias. Nesta altura do ano o sol põe-se mesmo à frente, na minha linha de horizonte. Com a visibilidade reduzida, descortinei as pedras da casa por instinto. Abrandei…
Voltei atrás a pé, não vislumbro vivalma, as silvas roçam-me os jeans. Pressinto esta propriedade alheia vaga. Contorno o que resta das quatro paredes, tristes por não susterem telhado, envergonhadas de há muito terem perdido capacidade de abrigo.
As pedras negras parecem querer falar comigo, as cantarias contar quem por elas entrava e saia, da moça que namorava à janela. Entro, consciente de ter licença. No interior só o enorme forno permaneceu vigoroso aos invernos consecutivos.
Cheira-me a casa, a abrigo, a castelo.
Quero revolver a terra com as mãos nuas.
Descubro com simplicidade que sempre pertenci a este lugar.
É uma relação simples e intemporal, que terei agora de firmar no mundo das leis dos homens.

sábado, 24 de maio de 2008

Levava já trinta minutos de modorra, quando ouviu o meter da chave na porta. Chegara por fim. “ Já não era sem tempo! Olá Samuel! Vai escrever a carta que a gente já lá vai ter, para a bisca.” – disse-o propositadamente em tom rebeloso, mas que Godot sabia ser de carinho e ao qual Samuel já nem ligava. «Olha, até já me despi. Agora não há “scones” para ninguém, só depois! Chegaste bem para lá da hora!». Com imediata segurança começa a acariciar a sua pele, depois de se despir também. Quem visse lá de cima sorriria para dois amantes….mas aproximando-se perceberia a mão na pélvis, que acompanha um rosto de sofrimento e ao mesmo tempo de alívio. A ele se dedicara desde o acidente de viação que lhe levara a prima, fazia dois meses. O fisioterapeuta/jogador de cartas era agora um amigo. Chegara a provocar-lhe tremores, arrepios frios e quentes, a única coisa que sentia, agora preenchia-lhe a alma enquanto lhe tratava do corpo. Era a pessoa mais próxima que tinha a certeza de amar. O amor não escolhe formas e aquela era muito peculiar. Estalavam os ossos. As lágrimas corriam, pois Godot estivera uma semana fora para as tais reuniões, desta vez no estrangeiro. São das poucas coisas que o levariam a deixar o seu companheiro sem o tratamento que lhe permite agora andar. Toda a esperança perdida fora resgatada pelas mãos que transportam esta forma de amor três vezes por semana. É o suficiente, e no entanto imprescindível. Muitas vezes, como hoje, nem trocavam palavra, mas olhares, emoção, sensualidade, gestos, que significavam tanto do bom que temos para dar ao outro, sem esperar algo em troca. Amizade Amor Felicidade Cumplicidade. Eles eram neste momento a vida um do outro e não faziam a menor intenção de deixar de o ser, tal como Samuel também o era. Sabiam-no bem e no entanto a dúvida sempre se punha... Chegará alguém? Chegava quase sempre.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Amanhã. Godot virá amanhã. Foi o que Elton pensou a seguir. Porque haveria de se ter apaixonado por ele? Ou melhor, porque raio é que se apaixonou? Não era mais fácil viver antes? Que fazer com aquele tremor de arrepio que lhe arrefecia e aquecia o corpo, duas vezes num só, duas pétalas de desejo no mesmo poema enluado? E com a porra da porra da espera, que fazer?

A raposa é que tinha razão quando disse ao principezinho:
Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração...”

À espera de Godot. À espera que o amor entrasse pela porta adentro, agarrado à chuva, voando cádmio pela poltrona que fazia cucu, cucu, como um beijo. Elton João decidiu-se. Esperá-lo-ia na cama. Até lá, sonharia apenas com os seus corpos nus vistos de cima no espelho gigante do céu.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Godot abanava incessantemente o leque com a cara de Samuel bordada a ponto de cruz e Elton João aproveitava-se, esticando o pescoço para que a sua face fosse igualmente arrefecida. “Queres levar um estalo?” – questionou-lhe Godot com uma voz áspera. Elton ruborizou, esticou ainda mais o pescoço, quase colando o rosto ao do seu companheiro de viagem, e respondeu: “Quero! E depois dou-te a outra face!”

Com as botas enfiadas na cabeça e sentados com as pernas mergulhadas na banheira, lamentavam-se da pontaria que um pombo tivera horas antes. “Maldito táxi descapotável. E o pombo também não podia ter acertado só no teu chapéu?” – rabujava Godot, antes do cenário inspirar Elton, para dar a provar ao viúvo da própria prima mais um requentado episódio da sua vida:

“O vasto campo da Flandres iluminado pelo plúmbeo que encobria toda a abóbada celeste, as pernas afundadas na lama da trincheira, os pulmões invadidos pelo cloro que a máscara não detinha, a Lee-Enfield encravada, o estômago às voltas com uma qualquer mistela que tentava enganar a fome… E a pontaria daqueles estilhaços de granada a choverem-me sobre o capacete?”

O silêncio invadiu a casa de banho e o desdém apoderou-se de Godot que sentenciou: “Uma vida desinteressante vista pela lente de uma imaginação delirante.” O veredicto calou fundo em Elton, cujo choro até irritou o bebé do andar de cima, conhecido por berrar toda a santa noite.

As lágrimas ainda corriam abundantes rosto abaixo quando acordou sobressaltado de mais um sonho, com um toxicodependente a injectar a sua dose diária a partir da ponta do seu nariz. Levou lá a mão, mas falhou o mosquito. Do outro lado das gelosias, a discussão continuava acesa na mercearia do canto e poucos se conformavam com o facto do taxista ter sido multado, por estar a beber uma chávena de Pensal enquanto conduzia. “Será que ainda alguém arrisca vir cá?”

quarta-feira, 21 de maio de 2008


E que outra coisa poderia ter dito? Ali do fundo da sua poltrona amarelo-cádmio não era mais que um espectador; nem isso, a maior parte das vezes, apenas um ser, ocupando espaço e absorvendo oxigénio, mas pouco mais. Era assim que se via, oscilando entre a comiseração e a indignação. Tudo auto-infligido.
Por isso gostava tanto das visitas de Godot. Mesmo que tivesse de esperar. Aliás, costumava dizer de si para consigo (andava, ultimamente, a falar imenso sozinho e em voz alta!), que estava à espera de Godot. À espera de Godot.
Pelos vistos não era o único.
Elton João levantou-se da poltrona para espreitar o dia para lá das gelosias. Os dedos já estavam cansados de tamborilar, o Pensal já estava frio e o relógio de cuco já marcava as 12 horas e dezanove minutos. Olhou para o passeio lá em baixo. Travões a chiar, um táxi parava mesmo em frente à porta do prédio. “Será alguém que chega?”, perguntou-se (em voz alta, novamente…) Elton João.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Godot era primo direito da sua falecida mulher. De quando em quando aparecia para um joguinho de cartas. Volta e meia trazia consigo o amigo Samuel que não sabia jogar às cartas mas escrevia cartas. Pelo menos assim parecia. Ficava a um canto calado, a escrevinhar, a escrevinhar. Godot costumava apontar para ele com o polegar e a dizer em surdina – nunca se cansa, o sacana. Ninguém sabe para quem são aquelas cartas, mas cá para mim só podem ser para uma mulher.
Mas tanto Godot como o amigo, que também tinha um nome estrangeiro, tinham lá estado na noite anterior e nunca apareciam dois dias seguidos. Godot era muito ocupado. Era o que dava a entender porque estava sempre a lastimar-se da falta de tempo para comparecer a umas reuniões. Elton João não sabia se o primo da falecida mulher faltava ou não àquelas reuniões mas tudo leva a crer que sim. Até uma vez telefonaram-lhe lá para casa às tantas da manhã: Estamos á espera de Godot há mais de duas horas. Sabemos que costuma ir a sua casa. Por acaso não sabe dele?

Elton João
disse que não.

domingo, 18 de maio de 2008

A espera desassossegava-o. Ao fim de 20 minutos a bater com as pontas dos dedos, ritmadamente, no braço da cadeira de palhinha, o seu coração disparou ao som estridente da campainha. Levantou-se de um pulo e avançou atabalhoadamente para o intercomunicador. Uma jovial voz masculina anunciou "Correio!". "Ora esta, por onde anda a D. Palmira para não abrir a porta ao carteiro?", o incómodo pela falha da porteira era superado pelo tamanho da decepção que se lhe estampara no rosto.
Arrastou-se de tédio a abrir as gelosias. Maquinalmente, pôs ao lume uma chaleira e numa caneca verde-garrafa duas colheres de cevada Pensal. Bebeu de rosto próximo à janela, grossas gotas de chuva miravam-no do outro lado do vidro, deixando-se escorrer. Lembrou-se de quando esta espera não existia. De quando estar só era o modelo de vida que professava com gosto e altivez. Procurou, no arquivo da memória, qual o momento exacto em que a altivez passara a queixume.
Sentou-se novamente. À espera. O peso da espera a roubar-lhe gradualmente a genica. Amorfo. Pronunciou as sílabas que o papel de parede lhe devolveu estranhas. É da hora, 11 horas e quarenta e dois minutos. "Chegará alguém?".

sábado, 17 de maio de 2008



Ele estava sozinho. Farto de estar sozinho. Todo o espaço que ocupava era bidimensional e parecia não ter alma. Apenas agora lhe saíra a palavra correcta da boca, ao murmurá-la isolada no meio daquela cozinha húmida, de ar não renovado. Não abrira ainda as gelosias. Esperava alguém, a qualquer instante, para preencher o seu vazio e se sentar a seu lado, na poltrona amarelo cádmio, que reservava sempre para outrem. De manhã, levantara-se mais cedo para se por mais "bonito". Com gestos duros, dos músculos entorpecidos e desabituados a tal ginástica, espalhara um creme qualquer, que tornara a pele mais lustrosa e corada. Não tanto pelo creme mas pelos movimentos, que activaram os vasos sanguíneos. De qualquer modo o resultado agradou-lhe. Com mais cor e mais genica, sorria no único momento do dia em que via a sua cara. O cabelo há muito tempo que caíra. Mas não o preocupa. Preocupa-o sim aquela espera desassossegada, a incerteza. “Chegará alguém?” Hirto, permanece a olhar para o relógio de cuco, ainda de mecanismo afinadíssimo (o que já não se pode dizer do cuco que da ultima vez que saíra já não voltara a entrar e permanecia intrépido de goela muda e aberta), onde se vislumbram as onze horas e sete minutos. “Chegará alguém?”.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

“Life’s a bitch, and I’ve got no talent to be a pimp!” – às vezes penso em estrangeiro, não sei bem porquê, mas devo andar a ver muita televisão. Uma, duas, três, quatro… De que serve a possibilidade de escolha quando nenhuma me compreende? Ou serei eu que não me consigo fazer compreender?

O forno está quente, muito quente – tenho um pequeno inferno aqui na minha casa do Nordeste. Lanço-lhe mais um pouco de lenha e a parede chamuscada torna-se branca com o calor – está mesmo no ponto. Não sei o que me deu hoje, mas parece que acordei com Deus no corpo. Assusta-me todo este poder, desconheço de onde veio este talento, mas não posso fraquejar. Jaz nas minhas próprias mãos o destino dos meus problemas – do pó vieste, em pó te tornarei! É desta!

O veludo acetinado acolchoa-me o corpo pela última vez. É tempo para a despedida. “Minha cara cadeira, tu foste durante 13 anos o reflexo – apenas o reflexo. Olhando-te, a realidade escapava-me!”

A madeira estalava e o fumo já ia alto. Passei um pouco de restaurador Olex pelo cabelo e abri a porta de outro quarto. Pelo seu corpo elegante deslizavam os últimos raios de um alaranjado pôr-do-sol. O seu bico desnudado brilhava intensamente. Uma tira de couro cobria o local sagrado onde coloco os dedos. Divinal estava ali aquela caneta.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Porque naquele momento percebi que já não podia voltar atrás.
A volúpia das suas formas tinha sido demasiado para mim. A imagem dos seus pés desnudados continuava a perseguir-me. O seu toque acetinado queimava-me as palmas das mãos.
Já estava tudo consumado, tudo decidido. Sentia-me marcado, um estigma a pesar-me na alma.
Tinha de agir. Sacudir o torpor e agir.
Serena, estava ali exposta.
Levantei-me.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Contemplei-a uma última vez. Pelo canto da boca entreaberta enforcava-se uma gota de saliva. Limpei-lha com uma carícia do polegar. Ela ronronou. Dei comigo a desapertar o cinto. Um calafrio doce percorreu-me. Estremeci. Agarrei-o com a mão esquerda. Parecia rebentar. Serena continuava com a boca entreaberta. O seu arfar quente queimava-me os miolos. Eram duas da tarde. Não lhe voltei a tocar, como se protestasse. Do caule altivo brotou uma rosa branca. O meu rosto contorceu-se num espasmo violento. O quarto inundado por milhares de pétalas. Sentei-me no chão de madeira com veias vermelhas que desmaiavam. E chorei convulsivamente.

domingo, 11 de maio de 2008

...veio-me à ideia não partir. Não a deixar, nem a ela nem às outras três. Fazer tábua rasa, começar de novo, limpo e rejuvenescido, como uma criança, a quem deixam escorrer pela cabeça pura, água da pia baptismal.
Eu, que sempre tive tudo no lugar certo, sinto este desejo pueril de ser incerto. E sem nunca ter estado efectivamente farto, ou ter dado conta disso, da vida que tinha e para a qual me parece, agora, tão rebuscado voltar. Sou um homem novo? Sou finalmente o homem que sempre fui e escondi? Será toda esta comoção causada por ti, que és apenas uma de quatro, que és tu como podia ter sido qualquer outra... Mas teria outra provocado semelhante epifania?
Perdido nestas questões existenciais, não sabia que fazer das coisas práticas, onde arrumar as malas vazias, estavam para ali, desfeando o quarto já quase na penumbra, desvanecendo a sombra dela no soalho de pinho resinoso. Quantas vezes teria sido já afagado, este chão, e porque não posso eu fazer o mesmo comigo, afagar-me de uma vivência que me é estranha, aparecer ao mundo com uma camada nova, fresquinha de envernizada.
Perdoas-me se ficar?

sábado, 10 de maio de 2008

quatro, todas na mesma condição. Ela veio comigo… como poderia ter vindo qualquer outra. Eu sou um bom profissional. Tenho mulher dois filhos uma vida encantadora com tudo o que qualquer homem poderia ambicionar. No entanto, não pude deixar de o fazer. O seu perfil não mo permitiu. Feriu-me de um golpe mortal, que raio de expressão mais infeliz, mas foi isso. Acometeu-se-me uma dor como jamais tinha sentido, os músculos dilataram e o coração disparou. Quero agarrar-te, amar-te, salvar-te, ajudar-te. Queria não ter visto! Queria não ter vindo! Queria não ter saído no apeadeiro!, pensei. A desolação ao redor era para um dos últimos “yuppies”, uma comoção menor, uma lágrima de crocodilo. Mas a sombra das costelas, o vermelho dos lábios, a maceração por todo... arrepio-me. Estava a pensar nela, mas a pensar na minha mulher nos meus filhos. E, em como sair daquela situação. Eu, que em pequeno nunca jogava a avançado, não batia mas pregava rasteiras, tinha sido agora rasteirado sem piedade e não sabia se me levantava. Hoje ainda tenho dúvidas…enfim. Eu, que sempre tive a roupa no lugar certo e a cheirar a malva, estava, então, naquele fim de mundo, que dois dias antes fora apenas o local do meu último trabalho como exactor para O. LEX., a arrumar roupa a uma ….apenas uma de quatro. Já não estou ali mas nunca deixei de arrumar aquela roupa. Ainda hoje a vejo. Estendida na cama …. pela cadeira, um robe de cetim que uma vez vestira e uma vez despira. Não a esqueço. Acabava de a arrumar e quando fechava a última mala …

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Serena… Isto deve ter sido há uns dois anos, não? Aquela sala, aquela cadeira. Tenho dificuldade em contar esta história. Não sei se quero que me compreendam. Não preciso disso. Não sei se quero que conheçam a sua divinal estrutura de ninfa, o gosto salgado dos seus cabelos, a clareza extraordinária do seu modo branco de pensar. Gosto de Rimbaud, eu. Sou um bom profissional, orgulho-me disso.

Escreveria assim, tentando de não vos dizer nada:

A ninguém, os monstros
apenas ao seu silêncio.
A ninguém, o perdão
nem à amargura das rosas
nem ao meu corpo de homem triste.

Eu sou o nojo e a covardia.
E existo.

Mesmo aqui,
ao vosso lado.

Há dois anos, era eu o espectador de sua beleza celeste naquela manhã cálida. Esperei até ter a certeza que ela dormia e abri devagar a sua mala. Preferem que me cale?... Tirei a roupa dobradinha e fui arrumando nas gavetas. Sentia-me feliz. Tínhamos saído do Nordeste às duas da manhã. Ela enjoou um bocado na viagem, precisava de descansar. Calo-me?... Ou pioro um pouco mais … e digo-vos que Serena era uma entre…

quinta-feira, 8 de maio de 2008

As incessantes baforadas de ar condicionado invadiam o quarto, amenizando o calor que brotava dos raios de Sol que trespassavam as cortinas, iluminando-a. Repousava equidistante das quatros paredes que protegiam a volúpia das suas formas. Um veludo acetinado cobria as partes habitualmente afagadas por pele alheia. As costas largas proporcionavam um tacto religioso a quem as percorresse. Aos braços tinha sido emprestado o amor próprio de uma luxuriante devoção. Os pés desnudados eram testemunhas vivas de tudo quando ela suportara ao longo dos seus treze anos. Serena estava ali exposta aquela cadeira.

quarta-feira, 7 de maio de 2008


Cena IV
Jovem e avó estão no centro do palco, ele com ar revoltado, ela humilde; sentado no chão, o Senhor dos Passos tenta retirar o espinho do pé.

Jovem – Oh avó, tu não estás mesmo aqui, percebes, isto não passa de mais uma ilusão da Igreja para nos fazer acreditar que…

Senhor dos Passos – Ah sim? E este espinho, é a fingir? E o sangue no meu pé, é sumo de tomate? Olhem que esta…

Avó (tenta pousar a mão no ombro do jovem, que se afasta) – Fé e amor, fé e amor!

Jovem – E o que mais? Extracto de caviar para a pele, pó de diamante para as unhas, manteiga de karité para o cabelo e um cartão VISA com «plafond» ilimitado. Tenham paciência! (afasta-se, aos gritos) Marília, onde estás?

Senhor dos Passos – Alguém tem aí um canivete? Ou uma faca de fruta? Também serve.

Avó senta-se no sofá, com ar pesarosamente pio. Jovem continua a procurar Marília. Senhor dos Passos permanece no chão, a escarafunchar no pé. Pela esquerda baixa, grupo de adolescentes e criança regressam, cantado e dançando um tema tipo Andrew Lloyd Webber. Colocam-se no centro do palco. O Senhor dos Passos fita-os abismado. O jovem não lhes presta muita atenção, pois está a falar ao telemóvel.

Grupo

“Ele é perigoso!
Ele não é quem diz ser!
Loucos, vocês não percebem,
temos muito a perder,
temos de o esmagar,
como o outro antes dele,
ele tem de morrer!
Pelo bem da nação, ele tem de morrer!
Tem de morrer, tem de morrer!!!”

Entra a tia, de punhal em riste e dirige-se ao jovem.

Tia – Tens de morrer! Sabes demasiado, tens de ser eliminado!

Jovem – Mas está tudo louco? Vim aqui porque me iam dizer e mostrar coisas importantes, nada vi, nada me disseram e agora tenho de morrer porque… ARGH!

Tia crava punhal no peito do jovem, que tomba lentamente para o chão. Grupo de jovens e criança pegam na cruz de Senhor dos Passos, deitam o jovem em cima e saem pela direita alta, cantarolando “Ele teve de morrer!”. Avó e tia seguem-nos. Todas as luzes se apagam, à excepção de foco roxo que incide sobre Senhor dos Passos, ainda sentado no chão a escarafunchar no pé.

Senhor dos Passos – Olhe, espere… ei, passe-me aí esse punhal!

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Entra o Senhor dos Passos de pé coxinho.

Jovem ai que tudo isto não me pode estar a acontecer
SP tenho sede
Jovem que lamuriento…posso saber o que fazes de pé coxinho e ainda por cima com esse peso todo às costas?
Entrou-me um espinho para o pé
Jovem Um espinho? Espera daqui a uma hora ou duas, que já vais ver o que te vai entrar para as mãos e para os pés…um espinho…não perdes por esperar
SPque dizes?
Jovem É isso mesmo que ouviste – cenas dos próximos capítulos. Leio a tv guia é o que é. A Paixão de Soraya, sexta feira às 22h
SP Sabes quem eu sou?
Jovem Claro. Toda a gente sabe e depois?
SP Então sabes que morri para te salvar
Jovem Vai contar essa a outro…eu não sou a minha avó…ela é que ia nessa cantilena. Morreste porque morreste, as pessoas morrem, sabias?
SP Morri mas ressuscitei
Jovem Ressuscitaste, ressuscitaste…e como é que nunca ninguém mais te viu
SP Fui para junto do Pai
Jovem Menino do papá, isso sim
SP Já vi que não acreditas na minha palavra. Vais ver como a tua avó acredita
Jovem A minha avó já morreu
SP Precisamente

Entra a avó também de pé coxinho

Jovem vó, mas tu não tinhas morrido?
SP E morri
Jovem Então faltaste à morte…chateavas-me por faltar às aulas e também tu afinal…
SP O senhor chamou-me
Jovem E vens assim sem mais nem menos? Quando estavas viva eras surda como uma porta. A gente chamava, chamava e tu nada
Jovem A voz do senhor é amor
JC Escuta jovem, amor.
Jovem Tá bem tá…tou a ouvir essa palavra de cinco em cinco minutos – sim, mor; não mor; vamos ao cinema mor; vamos ao café mor“; tens haxe, mor? Vó também te entrou um espinho para o pé?
Avó Não filho, caí nas escadas. Torci o pé e bati com a cabeça. Foi quando encontrei o senhor que me indicou o caminho da salvação
Jovem Devias andar sempre com o GPS na mala, assim não tinhas que falar com desconhecidos
Entra um grupo de adolescentes, 3 raparigas e um rapaz borbulhoso, em animada conversa, distribuem-se displicentemente no canapé, pelas almofadas e no chão, ignorando o jovem.

Jovem (para o público) – Ah! Não me faltava mais nada!! Aturar miúdos cheios de acne… Digam-me vocês, o que terão estas hormonas aos saltos de essencial para me dizer?! (virando-se para o grupo) Hei! Crianças, não são horas de irem à caminha? Desamparem-me a loja que continuo à espera que chegue a Marília… talvez com ela consiga ter uma conversa decente!

(Os miúdos continuam ignorando o jovem, trocando sussurros e risadas entre si)

Jovem – Oi!! Tão surdos ou fazem-se?! Esta agora…

(Irrompe um toque estridente do relógio de menina colocado no pulso no jovem, os miúdos levantam-se, como autómatos, colocam-se em fila de frente para o público)

Adolescente 1 – Neste dia tão prosaico…

Adolescente 2 – …da alma te queríamos falar…

Adolescente 3 – … dos mundos, de Deus…

Adolescente 4 – … dos elfos, das fadas…

Adolescente 2 – … de magos e fariseus…

Adolescente 4 – … da sombra, da luz…

Adolescente 1 – … da morte, do nascer…

Adolescente 3 – … se tu ao menos quisesses saber!…

(Ouve-se novamente o mesmo toque, os adolescentes parecem acordar, riem-se e saem pela esquerda baixa, deixando o jovem só, sentado no escadote tombado, com um foco de luz azul incidindo sobre si)

Jovem (começa por gritar) – Estão loucos, todos loucos, juro-vos…
Desculpem lá, vocês, estarem aqui a assistir a esta cena, a perderem o vosso tempo… eu ainda é como o outro… não tenho verdadeiramente nada de importante para fazer… é que eu… (desolado) eu queria mesmo saber!...
Cena III

As luzes baixam. Deixa de se ver a tia…um brilho rasante ao solo de cor vermelha ilumina agora o andar manco de dois pés não se desvendando o corpo. Um foco branco cega parcialmente a visão do jovem que se encontra no centro do palco, fortemente iluminado, e que compõe a roupa.

Jovem - Uma menina, Um manco…Que me queres dizer?….Queres que eu descubra o quê se nem sequer me deixas ver ou falar-te?

Os pés param e de mesmo ponto do cenário ouve-se o cantar dá letra de uma música cujos acordes são dedilhado numa viola.

Cantante - A musica não a conheces tu. Mas a letra revela-se-te incrivelmente fácil com se desde sempre a tivesses sabido de cor. A tua mãe não a cantou e tu nunca a ouviste no berço. Sim...é Madonna e é o do último ábum, gostas?

Jovem - Mas eu nem gosto de Madonna?!

Cantante - ehhhh....(e continua a cantar)

Jovem - Fazes-me ouvir uma música que eu canto sem conhecer. Mas que não esqueço. E não volto a repetir porque não gosto….Acompanha-me alguém que não conheço e afinamos os dois………Procuro-a mas mesmo manca esta pessoa, que ainda não percebi se mulher ou homem…..passeia-se pela sala escapando as minhas investidas……Ai carago!!! (bate com o joelho no escadote e tomba-o para o centro do palco, de onde tinha saído indo atrás dos pés - percurso livre).

Jovem (grita) - Não entendo, não vejo, não falo, nem percebo o que estou aqui a fazer.
Chamaram-me e põe-se a fazer entrar pessoas que não conheço….porque é que a Marília me chamou aqui…..?!

(Jovem confirma a mensagem antes recebida no telemóvel)

Jovem - Que raio.... Parece que estou à espera do médico mas numa casa ....de alguém que se mudou. A Marília tinha-se mudado……(dirige-se para a porta de cima, abre-a e espreita) …(chama gritando) Marília!!! (Fecha a porta.)

(A mulher cala-se. Ouve-se na direcção da porta de baixo um pequeno grupo distante, que se aproxima .)

Jovem - Ihhh, tamanha ingresia p'ra lá vem! 'Tou feito!

domingo, 4 de maio de 2008

O jovem vira as costas e deita-se na mesa de jantar, a falar com as cadeiras e os gatos, como se a tia não estivesse lá.

Jovem – Odeio-Te. Sem pontos, nem vírgulas, nem qualquer tipo de pausas. E desafio-Te! Vem cá, e diz-me olhos nos olhos que existes, planando omnipresente sobre o mais imperfeito dos mundos… Explica-me porque És Cruel. Explica-me! Queres brincar ao gato e ao rato? Queres???? Com mulheres cinza e púrpura? EU NÃO SOU UMA MARIONETE dos teus caprichos! Sou o dono da minha vida!

Tia – Cucu! Acho que ainda não percebeste bem, jovem…. Levanta a camisa por favor…Não tenhas pressa… mas levanta-a, por favor. (sorri)

O jovem fica algo perplexo, mas obedece e começa a levantar a camisa.

Tia – Já tás a ver o umbigo???? Tás? (o jovem anui com a cabeça) Boa!... Agora passa essa fase por favor… (fala lentamente, como se soletrasse) o teu umbigo não é o centro do mundo…muito menos os teus dramas existenciais… Lamento. Agora vamos avançar para as coisas práticas, please? (Abre a mala)

Começa a ouvir-se piano e uma voz:

em todos os quartos

em todos os cubículos

em todos os pardieiros

uma tragédia e uma comédia

e o mais inesperado dos poemas incompletos

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Um soturno miar irrompe em fundo. A criança de sexo feminino desvela os seus dentes num sorriso angelical e coloca um relógio no pulso de menina do jovem de sexo masculino. De seguida, expõe uma foto sobre cada uma das cadeiras. Os seus longos cabelos acinzentados saem pela direita alta sem dizer uma palavra.

Jovem (boquiaberto) – Por que raio não posso eu andar sem saber da hora e do mês? (para o público) Causa assim tanta impressão a estes fariseus que eu não me submeta a mais esta regra deste mundo burguês?

Levanta-se para ir ver as fotos sobre as cadeiras e a iluminação apaga-se por completo.

Jovem (enraivecido) – Estão a espiar-me, seus malvados! Então, é isso que a vossa inteligência cósmica tem para me oferecer?!?!

CENA II

Ainda ao escuro, entra a tia da criança de sexo feminino pela direita alta.

Tia (com uma voz grave, colocando a mão no ombro do jovem) – A curiosidade matou o gato!

A luz volta, deixando ver a longa capa roxa que cobre o vestido púrpura da tia, bem como um gato cinzento em cima de cada uma das cadeiras, ocultando as fotos.

Jovem (com desdém) – Então, és tu quem me vai demonstrar como funciona o mundo? Fazer ver o bem e o mal, o lógos do universo, a areté do homem? Enfim, qual é a surpresa que trazes hoje para me incendiar a alma, sua filósofa… da espionagem?

A tia coloca sobre a mesa uma pequena gaiola que estava escondida pela sua capa. No seu interior, está um rato com pêlo branco-sujo.

Tia (com uma pose paternal) – Meu caro irmão, o mundo não é para ser ensinado, mas sim aprendido.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

PEÇA PARA UM ACTO SÓ


Na esquerda alta, canapé vermelho e almofadas grandes no chão; ao centro alto, mesa de jantar comprida e três cadeiras; na direita alta, porta; na direita baixa, escadote de cinco degraus; na esquerda baixa, porta; centro baixo vazio. Iluminação indirecta que se acenderá de acordo com as movimentações das personagens.

Acto I – Cena I
Jovem de sexo masculino entra pela esquerda baixa e senta-se no escadote.

Jovem (para o público, de forma confidente, mas acre) – Disseram-me para esperar aqui, que não demoravam, que tinham coisas muito importantes para me mostrar… Duvido! É que duvido mesmo! Acham que conseguem demonstrar a… vamos lá a pensar um pouco… a perpetuidade da alma humana ou… esta é boa… a teoria da expansão do universo aqui, num ambiente tão burguês e num dia tão prosaico como o de hoje. Aliás…

Jovem é interrompido pela entrada de uma criança do sexo feminino que se lhe dirige de forma resoluta e que fica parada a mirá-lo.

Jovem (incrédulo) – És tu?

terça-feira, 29 de abril de 2008

Continua a chover… há uma semana que chove sem parar.
Tomei decisões: evoluir nas escolhas musicais e trocar de casa, apesar de a obra no apartamento vizinho ter parado. Depois logo vejo o que faça, agora preciso do inesperado.
A minha aranha apareceu morta. Causas naturais, ao que me parece. Senti-me como se tivesse perdido uma filha.
Vou dedicar-me à botânica. Ao estudo das plantas apiáceas. Uma família de plantas onde se encaixam a salsa e a cicuta parece-me interessante. E filosófico.
A cicuta pode vir a ser útil. Nunca se sabe.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

teodora
disse-lhe ele
com ternura e murmurou de novo o nome dela como um sopro


teodora



mata-me
quero ser
teu

e ela negra



premiou-o
com uma esto-
cada


que estopada

domingo, 27 de abril de 2008

Decididamente este homem era diferente. Não se assustava com o facto de ela ter uma viúva-negra e, mais estranho ainda, não a estranhava a ela. Parecia, pelo contrário, desejar a dupla. De predadora pressentia ter passado a potencial presa. Uma impressão desconhecida nasceu-lhe nas pontas dos dedos dos pés.
Contrariamente à sua natureza intrínseca, deu por si a vacilar, acobardou-se, desculpou-se com uma máquina de roupa que precisava de estender e não havia tempo para reuniões de condónimos extemporâneas. Assim que fechou a porta com estrondo na cara de Antão, arrependeu-se. Culpou-se. A culpa, sempre a mesma inexorável culpa que a acometia a cada três passos.

A viúva olhava-a com espanto. Ou pelo menos assim ela julgou. Provavelmente seria o seu próprio espanto reflectido. Objectivamente a aranha não poderia compreender o que se tinha passado nos últimos minutos. Mas compreendia-a a ela. Nem sempre tinha sido assim. Nos primeiros meses de convívio eram estranhas, uma habitando um espaço confinado dentro do espaço confinado da outra. Teodora percebeu que nunca seriam verdadeiramente companheiras enquanto tal fosse a ordem espacial, pelo que se decidiu a pedir ao veterinário que retirasse as glandes venenosas à viúva-negra. Nessa noite, particularmente quente e húmida, teve um estranho sonho, que não conseguia recordar na totalidade. Acordou encharcada de suor e lascívia. A aranha, agora solta pela casa, tinha-se vindo aninhar aos pés da cama.

A partir desse dia a relação de Teodora com os homens havia-se transformado radicalmente. Ela não conseguia deixar de imaginar que as glandes venenosas retiradas à viúva, se tinham impregnado nela própria.
Antão parecia imune ao seu feitiço….e fora o único até agora de quem a aranha não se tinha aproximado. Estranha coincidência pensou. “ Ele é tratador de animais e talvez já tenha sido mordido por uma aranha e conservado algum veneno”. Algo de errado se passava. Desta vez a predilecção pelo homem não estava do lado da aranha, mas dela. Era já a sua segunda longa tarde de meditação, sobre o que fazer, mas nada. O vazio. A sua infalibilidade, como desvantagem nunca lhe permitira desenvolver soluções de recurso. Encontrava-se isolada, perdida, sabendo a premência da tomada de uma decisão. No dia seguinte arremetida de uma sensação de derrota arrumou as suas vestes negras que utilizava durante todo o ano, decidida a sair com destino à casa de família. A aranha força-a nitidamente a essa decisão. Senão, porque choraria? Mas algo contrariaria a sua apressada e sofrida decisão. Antão tinha dedicado a sua última semana a espiá-la, o que já fazia desde que elas se tinham mudado para aquele prédio, mas agora não só com intuito de estudar o comportamento de aracnídeos em ambiente doméstico, mas de deliciar-se também com o corpo dele e da vizinha.

- Olá, bom dia! Com estás?
- Ah…..és tu! Olá, bom dia! Esperava outra pessoa, desculpa. Está tudo bem?
- Sim, obrigado. Vejo-te atarefada com essas caixas. Era só para saber se poderíamos fazer uma reunião extraordinária de condóminos.
- Hã?! Mais ainda? Não sei se posso.

A desculpa tinha sido inventada no último minuto, mas parecia perfeita e o motivo muito forte. A sua simpatia por Antão levá-la-ia a atrasar a sua saída? Tinha de o fazer! Antão nunca teria outra hipótese de estudar um outro animal doméstico de tão perto. Consigo as aranhas morriam passado pouco tempo de as levar para casa. E nunca descobrira porquê. A sua investigação estava adiantada mas precisava de continuidade. Por outro lado, a mulher tinha sido a primeira a expandir e revelar toda a sua lascívia. E ele gostou disso. Não queria perder essa sensação. Estava mesmo determinado a ampliá-la e levá-la por muito tempo. Assim, deu-se o momento de planear e jogar por antecipação…

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Pois …. Teodora era malícia e meditação, introspecção e acção. E depois… depois sentia-se culpada. Esta era a sua emoção recorrente: culpa de tudo, culpa de nada, culpa por ter tentado, culpa por ter desistido. Indecisão e dúvida pautavam-lhe os dias, às vezes dava por si a fazer festas à aranha e a apertar-lhe o corpo em demasia. Parecia que ela era o único ser que realmente a entendia, mais até do que ela a si mesma… pois… na verdade, não se entendia nada de nada. Outra dúvida era se às vezes as ideias que lhe surgiam, nasciam da sua própria cabeça se da outra, daquela aranha negra e voluptuosa…. Imensa…

A solidão faz nascer espuma nos cabelos
a imaginação viaja demais num corpo só.

Aquele flash televisivo através da porta não tinha sido o primeiro, nem seria com certeza o último. Alimentavam-na os corpos da vizinhança à distância de uma porta entreaberta. Triste não é?

Antes do Antão, fora o Antero, antes de Antero, Aníbal (ela sempre tivera um certo fetiche pela letra A). Mas não nos percamos… nem de Teodora, mulher íntima, nem da sua arte de aproximação aos homens. Dúvidas assumidas, aproximava-se sempre daquela mesma maneira: primeira a aranha, seus dedos milenares acordando uma qualquer pele nua, depois ela, subtil, salvadora, sua intranquila timidez ajustada como uma máscara perfeita. Não era uma técnica vulgar, pois claro, e os homens, que na sua maioria sentiam aquele primeiro toque como a realização de uma inalcançável fantasia, fugiam dois segundos depois de abrirem os olhos.

Mas nem todos… nem todos.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um profundo sentimento de culpa invadia-a. Remoía-se com a sua recorrente fuga para o excesso. Sabia que tinha de embargar o interminável matracar que irrompia do apartamento vizinho, mas não podia ter cedido à tentação. Apenas conseguiu vergar esta ideia quando se desvelou na corrente do rio da memória tudo o que havia sentido naquele primeiro encontro: “Sou Antão Barreto, o novo vizinho, biólogo de formação e tratador de animais do jardim zoológico de profissão.”

O leve mordiscar na orelha fez com que ele se contorcesse um pouco, o delicado deslizar face abaixo acentuou-lhe o movimento, a breve carícia nos lábios arrepiou-o, a suave pressão no queixo fez-lhe suspirar, o sublime toque bem no meio do peito desabrochou-lhe o arfar, o húmido galgar sobre um dos mamilos levantou-lhe todos os pêlos do corpo, a rápida chegada ao umbigo despertou-o do já inquieto sono.

Não foram mais de dois os segundos em que ficaram, de olhos bem abertos, a se contemplar. O coração precipitou-se em arrítmicas pulsações, todos os outros músculos enrijeceram até que os seus pulmões fizeram brotar um pavoroso grito. O prédio inteiro apeou-se da cama e mesmo a viúva-negra, que observava a partir do umbigo, foi tomada pelo susto.

A porta escancarada do apartamento deixava ver Teodora languidamente estendida na sua chaise longue, com as vergonhas cobertas por folhas – qual Eva a se preparar para regressar ao Paraíso – e os pés acolchoados por umas crocs. Saboreava uma tosta intercalada com fiambre de peru, ouvia See You Naked e não havia pregado olho a noite inteira, só para ver o vizinho correr nu porta fora, enquanto gritava como o mais fervoroso Ateu quando se apercebe que acabou de beijar Deus. Ficou triste. Afinal foi pouco mais do que um flash aquela passagem pelo ecrã em que a sua porta se transformara e agora tinha de ir recolher a sua arranha de estimação, a quem as glandes venenosas haviam sido removidas.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Bem, praticamente, pois falta a parte do enfrascar-me em conhaque, que neste caso não seria para amaciar as carnes, mas para embaciar o espírito. Isto apesar de eu ser mais uma rapariga do tipo vodka tonic, o que supostamente não se coaduna com vocações canónicas… tal como as roupas coloridas e o acordar tarde.
Mas preciso de viver esta clausura, hoje, agora, e responder aos fios de chuva com correntes de pensamentos.
Sentada no sofá, caneca de café em punho, bloco de notas e lápis mesmo à minha beira, deixo correr as ideias. Inevitavelmente, reminiscências da minha infância encadeiam-se nas recordações mais recentes, trazendo à flor da pele as decisões mais sofridas, as desilusões mais sentidas. E questiono-me, seriamente, se alguma vez…
Poc, poc, zzzummmm, poc, poc! Mas quem é que consegue pensar com este chinfrim? Não fora este batuque aqui ao lado e aposto que conseguiria retirar algum nexo deste turbilhão. Bolas!
Com os Led Zeppelin no máximo e a voz do Robert Plant a abafar a rudeza das obras, volto ao sofá, pronta para mais uma fiada de meditação. Então aqui vai.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Acordei, abri o estore e vi que estava a chover.
Primeiro pensei que não havia maneira de chegar a Primavera, logo a seguir refutei-me ao lembrar que na Primavera e no Verão também chove. Portanto, o meu problema não é de uma estação (mais ou menos prolongada), é de todo o ano. Chove todo o ano e faz sol todo o ano. Só varia um bocadinho a intensidade com que as duas coisas acontecem.
Perante esta contrariedade - e mesmo sem que conseguisse encontrar uma relação causa-efeito perfeita entre a chuva e as minhas opções de vida -, decidi não sair de casa, desligar o telefone, restringir aos meus movimentos ao mínimo, ficar a olhar a chuva a cair e planificar os próximos passos a dar.
Chateou-me um bocado o barulho de uma obra que está a acontecer noutro apartamento. A desvantagem de viver em prédio é que a pessoa não pode fingir que está num Convento de Carmelitas. Não que eu ache que a vida religiosa fosse uma boa alternativa para mim, especialmente porque gosto de vestir roupa de cor e custa-me a acordar cedo.
Sinto-me como um peru em véspera de Natal.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

sílvio silvou ainda mais do que o costume. acontecia-lhe isso quando era espezinhado por qualquer preocupação, respirava duma forma perturbante, muito parecida ao resfolegar duma locomotiva. então o que fazia esta mulher. como ousava perturbar a ordem com que displicentemente içara até aos bíceps as mangas da sua camisa. que atrevimento. enquanto se afundava nessas elucubrações, o monge não se apercebeu de algo que se urdia longe do seu alcance. um dos autores da história, um tal não sei que roberto entretinha-se a manobrar os acontecimentos de forma totalmente irresponsável.
sílvio procurou olhar a mulher nos olhos, um olhar de reprovação bem entendido, não o conseguindo por aquela estar demasiadamente concentrada na tarefa de arrebanhar um ímpio para a sua causa. as mangas adquiriam assim uma ordem irrepreensível ás mãos firmes e metódicas da secção feminina do casal oliveira. mas quando finalmente os seus olhos encontraram os dela, sentiu os seus braços levantarem-se como se estivessem a proteger do sol o seu rosto, e este a voltar-se na direcção oposta ou seja longe daquele olhar que irradiava doçura. então era aquilo a doçura duma fémea. sílvio nunca a tinha sentido. era a primeira vez. as mulheres tinham-lhe sido sempre impostas desde a avó que o criara, até á mulher com quem a mãe o quis casar e com quem na realidade casou e isso fizera com que tentasse alhear-se do mundo. no convento só havia homens. e mais tarde no regresso á vida leiga passou a tratar as mulheres como os homens de saias, com quem estava habituado a lidar durante o período de recolhimento. chamava-lhes irmãzinhas e elas habitualmente premiavam-no com um olhar de estranheza. Sentiu-se portanto incomodado por aquele foco intenso e simultaneamente suave. Naquele momento procurou corresponder e deve ter sido bem sucedido porque a mulher continuou a fitá-lo e agora era mais do que um olhar doce que recebia. Ah aquele gajo, o roberto era mesmo um merdas. Não desviavam os olhos um do outro e nem reparavam que a secção masculina do casal oliveira também não desviava os olhos deles. Muito menos se aperceberam de que os seus rostos se tinham aproximado tanto que podiam ver nítidamente a profundidade dos poros um do outro e que esses poros vertiam um liquido rosa bastante espesso que se veio a confirmar mais tarde ser sorvete de morango. Só acordaram do torpor em que se encontravam quando os seus lábios se juntaram e as suas línguas se enroscaram furiosamente uma na outra e isso porque a mulher sentiu o paladar de alcaparra, ingrediente que banira completamente da sua cozinha devido unicamente á rudeza da palavra. Aí recuou. As suas bocas separaram-se ruidosamente. O homem do casal oliveira aproveitou a deixa para gritar eureka eureka. Como era um indivíduo extremamente educado não ousara perturbar o enlevo da sua mulher e de sílvio mas agora que tinham acabado sentia-se á vontade para o fazer já sei porque é que as nossas coisa não estavam nos seus lugares. Mas eles não o ouviram. Sílvio tinha cuspido o resto de alcaparra que ocupara a coroa meio cariada dum molar e esse gesto de boa vontade caíra fundo no coração da fémea oliveira. saíram de mão dada de novo de olhos cravados um no outro de modo que estou em crer que se tenham estampado os dois contra a porta fechada do elevador. Mas isso já não nos diz respeito. Posso apenas mencionar o que aconteceu ás restantes personagens desta história – o macho oliveira ainda lá está a tecer a sexagésima quinta teoria sobre o dinamismo inesperado dos seus pertences e o autor deste belíssimo texto, o tal Roberto desinteressou-se completamente dele e procura agora resolver um problema no teclado do computador , cujo shift está a funcionar muito mal, resultando daí algumas irregularidades na escrita.
Silvio, que desde o momento em que pisara a primeira tijoleira, logo à entrada daquele quadrado perfeito, estava completamente constrangido, ficou ali, de antepara a Julianne, cujo contacto do corpo frágil lhe causava profunda estranheza e desconforto. Sabendo-se responsável por aquele cataclismo na natureza morta que era o quadro do casal, remoeu entre dentes a alhada em que se via metido. A vizinha tomava aquela reza como uma expressiva, apesar de não perceptível, demonstração de solidariedade para com a devassa de que tinham sido vítimas. Silvio era homem de incontáveis defeitos, mas o cinismo não se enumerava entre eles, pelo que se absteve de comentar alto o que quer que fosse relativamente ao “patife” que entrara no apartamento.
Guilherme Oliveira, o vizinho, a quem a mulher chamava carinhosamente “Guilloume”, como se assim o conseguisse elevar com ela a outro nível da estratosfera, ia compondo o ramalhete, com a velocidade que conseguia imprimir, ao acto de devolver todos os objectos ao seu intemporal e perfeito lugar. Quando a sala retomou o seu aspecto original, Julianne conseguiu finalmente acalmar-se, sentou-se na beira da senhorinha, um cadeirão forrado de tecido florido que parecia ter sido reduzido para 2/3 da sua correcta dimensão. Esta calmia foi de apenas um instante, que durou até ela constatar, com horror, que quem a tinha consolado era senão o seu arqui rival vizinho. Silvio era a personificação do caos, de tudo o que podia correr mal na polidez de um indivíduo. Julianne duvidava mesmo que alguém que demonstrava tantas incapacidades de interacção social se pudesse classificar de vizinho. Para ela, ele era um selvagem. E a fantasia de Julianne era imaginar-se, e ao seu “Guilloume”, personagens do Admirável Mundo Novo. Havia que começar por purgar os elementos disfuncionais da sociedade e, para isso, qualquer comunidade era um bom ponto de partida. Julianne decidiu naquele momento tomar a seu cargo a domesticação de Sílvio. Através desse acto, toda a vizinhança evoluiria. Dobrou com precisão 3 vezes cada manga de camisa, como que a arregaçá-las e deu início aquela que seria a obra prima da sua vida.

sábado, 19 de abril de 2008

Entrou e reparou pela primeira vez nas duas figuras com quem já convivia fazia alguns meses. Mas nunca tivera oportunidade de estar sob o mesmo tecto sozinho com elas, de respirar o mesmo ar. A mulher, de tão chorosa nem reparou no defeito aérofugo do vizinho, e deixou-se abraçar levemente como que apoiando-se, evitando um breve desequilíbrio, decorrente do seu estado de choque, já que o marido, a seu pedido, media com uma fita de costura, e lupa de mão (porque era meio cego) os afastamentos entre as peças. Fora esta situação grave de violação do seu ambiente, domesticado, que provocou o caos nesse universo perfeito. Ela era propensa a descontrolos provocados por qualquer engano, erro, desvio das normas, que chegassem até si por qualquer canal de comunicação. O último grande ataque tinha sido provocado pelo purée aux champinhons que era hábito confeccionar e que teve de ser feito com uma espécie diferente de cogumelo. Como ao primeiro domingo de cada mês comem sempre cogumelos passados com manteiga, batata e tempêros vários - o dito purée - esta não se coibiu de os comprar, mas perdeu pelo menos três cabelos com o stresse no caminho loja gourmet-maison Duchant, por ter de recorrer a uns cogumelos desconhecidos que lhe poderiam estragar completamente o primeiro dia da sua semana, e toda esta, na verdade. De origem francesa, tal com a receita, Julianne, muitas vezes chamada de Juliana pelas vizinhas que não a suportam e em volume que garante a audição do trocadilho por parte desta, conservava o seu apelido paterno, como que para marcar a diferença e poder sentir-se superior, imune ao defeitos e imperfeições das pessoas comuns - que segundo ela, estava mais que provado, se transmitiam com a convivência. Esta conduta, com o passar do tempo, levou à obsessão em que vive agora: a busca da perfeição e da tranquilidade, do equilíbrio, da harmonia, sobretudo em seu redor.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Sílvio era, portanto, um monge, um mal entendido com um filho morto como um bafo nos braços. Essa história, por ti revelada John, não tem mais palavras, só silêncio. A mim, ele nunca ma contou... Mas já que estamos numa de o revelar sem lhe pedir autorização, houve uma história que ele me contou que me ficou sempre. A sua dimensão humana, de homem do contra, bruto e bom amigo em simultâneo, estava ali. E talvez algo mais, agora que juntamos as peças… Uma história longuíssima, tendo em conta o tamanho normal das suas frases. Nada de especial. Tudo especialíssimo, ao mesmo tempo.
Os seus vizinhos da frente eram um casal organizadíssimo. Um quadrado exacto. Entravam e saíam todos os dias à mesma hora. Faziam compras de supermercado às segundas, visitavam a mãe de um à terça e a sogra do outro à quarta, viam televisão (sempre na mesma sequência: telejornal, telenovela portuguesa, telenovela brasileira, off) até, exactamente, às 10h35. Se brigavam, brigavam à sexta, entre as onze e a meia-noite. Se discutiam à sexta, sábado, às onze certinhas, quando ele voltava do mercado e ela estava a acabar de desligar, pontualmente, o aspirador, ele trazia uma rosa. Branca. Se fodiam, não se ouvia… devia ser muito baixinho, imaginava Sílvio e, provavelmente, sempre na mesma posição. Missionário. Chegou a ter a teoria de que quando no domingo, se atrasavam cinco minutos na saída para a missa (o que acontecia de quinze em quinze dias) fosse por essa pecaminosa razão, mas nunca teve a certeza...
Até que um dia, quando ia a sair, percebeu que os vizinhos tinham deixado a porta aberta. Não resistiu. Entrou. O apartamento era exactamente como ele tinha imaginado. Um espelho, vivo e morto, de um quadrado exacto. Olhou segundos para aquilo e começou a mudar de posição (alguns centímetros) todos os objectos que conseguiu e saiu a correr. À hora exacta da chegada deles, começou a ouvir os gritos. Não paravam. A mulher chorava como um rio. Até hoje, Sílvio considera ter sido aquela a única boa acção da sua vida. O seu mais belo movimento solar.
O pior … o pior foi que entre os gritos que não paravam, Sílvio não resistiu … foi consolá-los... era a tal delicadeza … e assim… entrou na sua vida um casal muito organizado, portanto.
Toctoctoc… (tentou primeiro)
Dlim dlão…
Era um sábado à noite.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O arrastado bater das botas sobre o cascalho solto anunciava a chegada do bisonte. Ostentando o seu hábito desbotado pela contínua baba que lhe escorria boca fora, o monge Sílvio via prostrado à sua frente o resultado das suas premonições. Foi numa tarde em que um demoníaco calor fazia estalar o pedaço de madeira que dava algum resguardo à sua cela que o eremita anunciou o destino daquele homem. Lera tudo na espuma do café que tomara dias antes com um desconhecido no antro de consumo mais próximo (ele era monge apenas em part time).

O morto fedia como água descoberta choca passados seis meses. Alguém tinha assassinado o bisonte – uma seta impregnada com toxina botulínica perfurara-lhe o baço. Trouxeram-no estatelado sobre uma chapa de zinco e despejaram-no naquele que seria o seu repouso final – a caixa de cartão onde o novo frigorífico do mosteiro viera embalado. A agressão que aquele bedum provocara no tracto nasal de Sílvio fez, todavia, disparar os zumbidos que pautavam a sua respiração, bem como direccionar a sua crónica propensão para o insulto para o padre que ali se deslocara para oficiar o funeral.

O compassado ruído e os trinta e quatro palavrões diferentes articulados em pouco mais de dois minutos deram a impressão errada de Sílvio ao enfezado sacerdote que, temendo um confronto físico, se pôs em fuga. O monge carmelita estava tão-somente a expiar todas as amarguras resultantes da sua não ordenação – a baba desfizera o papel onde escrevera as respostas do exame final do seminário. Deixado sozinho perante o bisonte, Sílvio tomou em mãos uma pá e delegou na força dos seus braços a tarefa pendente.

Pelágio António Prudente, filho de Sílvio, foi a enterrar a 27 de Agosto de 1997.

quarta-feira, 16 de abril de 2008


Porque Sílvio nem sempre tinha sido assim. Aliás, o facto de ter reagido tão mal à actuação do “bisonte” era prova disso: havia resquícios de uma delicadeza passada, agora tão deslocada quanto um impropério num funeral. Era irritante, realmente, o modo como falava para dentro, deixando o ouvinte hesitante entre um arreganhado «como?» e um temeroso silêncio, não fosse Sílvio ter mais uma das suas temperamentais actuações; como era irritante aquela história de meter conversa com as pessoas — por causa disso os amigos já fugiam a tomar café com ele.
Quando eu conheci Sílvio, ele ainda mostrava os sentimentos. Ainda não escondia a sensibilidade. Talvez porque fosse mais novo. Já tinha passado aquela carapaça mole da adolescência e a açucarada euforia dos vintes, mas não tinha ainda sido cilindrado pela calosidade dos quarentas. E nessa altura Sílvio era um homem que tinha coisas para dizer ao mundo, teorias que tanto abrangiam a infinitude do universo como a doçura de um beijo, teorias mais baseadas no instinto do que no conhecimento livresco. Era um fulano interessante.
Eu não estava com ele aquando da actuação do “bisonte”. Mas consigo imaginar a cena.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Mas não se pense que era só o resmungo a sua imagem de marca, tinha outras coisas que incomodavam a maioria das pessoas. Era daquelas pessoas que cultivam propositadamente hábitos irritantes, aparentemente com o objectivo de tentar abanar a restante população com as suas pequenas idiossincrasias, mas só conseguindo tornar-se objecto de má-língua ou de penitências pascais.
E passo a elencar:
- metia conversa com as pessoas que frequentavam o mesmo café, indiscriminadamente, mesmo sem as conhecer, e especialmente quando estavam sossegadas sem incomodarem ninguém;
- se percebia que alguém era mais delicado, usava todos os palavrões que sabia (e alguns que inventava), se estava perante uma pessoa mais bruta, desfazia-se em mesuras;
- comparava todas as pessoas que conhecia a animais (desde girafas a traças);
- gostava de usar roupa velha, cheia de nódoas e, de preferência de tamanho maior que o seu (gabava-se de não compactuar com a indústria da moda e de não contribuir para a melhoria da estética mundial);
- fazia um barulho esquisito a engolir ar (ou seja, sempre respirava)…
Mesmo assim, não se pode dizer que fosse mau amigo.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

"O tipo parecia um touro...ou um bisonte, sim, um bisonte. Um feixe de músculos sem nada que os comandasse. Os músculos parece que agiam sozinhos. Aí diferenciava-se do touro ou do bisonte."
"Qual tipo?"
"Um gajo no centro comercial..."
"Qual gajo?"
"Um gajo, pronto..."
Ele nunca explicava nada. Era sempre assim. Resmungava qualquer coisa. Ninguém percebia nada. Pediam-lhe explicações. Para que é que lhe pediam explicações? Quem pede explicações sobre um resmungo qualquer? Resmungar não é falar. Mas Sílvio era daqueles que fugia à regra. Quando resmungava dizia umas coisas. Não ruminava as palavras como toda a gente, quase as soletrava. Mas depois eram coisas sem nexo porém ditas numa cadência precisa. Quer dizer, parecia um resmungo mas depois não era bem um resmungo. Ou melhor: não parecia um resmungo mas depois era isso, um resmungo.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

em ouriço meu

A ondulação amainara, o vento afrouxara e a chuva inibira-se. Susana podia finalmente dar a conhecer ao mundo Pikus. Mas este ouriço fêmea ainda não se sentia suficientemente seguro de si, para enfrentar o Baile de Debutantes do Clube Micaelense. Após uma longa noite de insónia que fugira ao real, concluiu que tudo quanto precisava era de um pouco de rimel na ponta dos espinhos.

Hau Lourenço da Costa, o espadaúdo birmanês que pachorrentamente ouvira os desejos de Pikus no saguão do seu centro de estética, já só pensava no bem-estar da sua carteira, preparando-se para confiar este cliente aos cuidados do seu mais requisitado operacional, o entrevado congolês Taye Lopes Figueiredo.

“O rimel apenas lhe desvela a ira. Você vai querer muito mais!” – segredou Taye ao ouvido de Pikus, enquanto um dos espinhos lhe perfurava o lábio inferior. Colheu num dedo as gotas de sangue que brotaram com o remover daquele arpão, passando de imediato o dedo ensanguentado pelo braço desnudado de Jezabel, a sua assistente. “Um pouco de silicone na base é tudo quando necessita para desfraldar a luxúria contida nestes glamorosos espinhos.” Pikus ficou a arfar com a sugestão, mas antes que abrisse a boca, Taye prosseguiu. “Vai querer dar azo à gula no baile, por isso é melhor fazer já uma lipoaspiração preventiva. Não se deixe é enganar pela ganância dos outros. Aqui é mais barato!” – confidenciou Taye ao outro ouvido de Pikus, antes de dar a estocada final que selaria o negócio. “Encher-se-á de orgulho e será a inveja de todas as outras!”

Pikus saiu disparado do quarto dos fundos, atropelou Jezabel e deixou Susana calmamente a ler o último número do Times Literary Supplement que encontrara na sala de espera. O terror que se apoderara de Pikus só deu os primeiros sinais de cedência quando vislumbrou o sacerdote Mário Roberto. Mário estava atarefadíssimo a vestir o Corpo Insólito com o novo fato de três peças costurado pelo preguiçoso alfaiate John Silva.

em canto meu

quarta-feira, 2 de abril de 2008

1º round. Toca a sineta.

Chegamos ao fim da primeira ronda de Corpo Insólito. Ou primeiro round se quisermos. Não houve vencedores nem vencidos, apenas um enorme prazer em escrever. Não sabemos se iremos continuar. Pelo menos respeitando este modelo. Creio que da parte da maioria há essa vontade de manter o corpo vivo. Eu sou a favor da eutanásia se se tornar necessário. Iremos decidir o que fazer agora em reunião a agendar. Bora?

domingo, 30 de março de 2008

Tantas alvoradas já, desde aquele dia amanhecido a sangue de galinha, que me falha a memória, amarelecida pelo gastar dos anos. O meu corpo, esse, contínua impecável, regularmente desmontado e oleado com um desvelo tocante, por um par de mãos progressivamente gasto também, mas sempre com o mesmo carinho. Estas são as mãos que sempre desejei me possuissem e consola-me saber que ficaremos juntos para sempre, mesmo depois das ossadas dele serem pó, naquele imponente jazigo de família.

Cheguei aqui em muito mau estado, com a auto-estima numa lástima. Isto de matar um morto e escavacar uma pedra tumular destabiliza qualquer revólver! De tal forma que lembro apenas uns quantos flashes desse período, o resto escutei aqui, nas tertúlias que preenchem as tardes soalheiras. Consta que andei perdida algum tempo, na clandestinidade. Resgatada, fui etiquetada, a minha proveniência conferida e subi a leilão na Sotheby´s, parte de um espólio do qual não guardo memória.

Do que lembro bem é daquele rosto severo de olhos mansos deleitados sobre mim, as mãos possantes, uma segurando o catálogo e a outra um pingalim, que elevava sempre que outra licitação se ouvia. Soube imediatamente que estavamos destinados e que nunca me faria disparar sobre vivalma. Tem-me aqui desde esse dia, nesta espécie de altar a Antero de Quental, numa caixa de vidro e madeira ricamente adornada. Repouso assim, nesta cama de veludo carmim, qual princesa adormecida numa redoma, ao lado de dois pedaços de granito que reconheço bem. Para uma objectora de consciência, a vida não me podia ter corrido melhor, sobretudo hoje, que soube o que o destino me reservava, quando veio o advogado conferir os termos do novo testamento. Eu e aquele livro quase desfeito, que chegou há umas semanas do alfarrabista do Bairro Alto. Não sei quem seja, nem quem o terá escrito, mas teremos toda a eternidade para pôr a conversa em dia, espero que ele não se desmanche antes disso!

Se se cruzarem um dia destes com o Magno, pobre coitado sem alma nem jeito de piedade, digam-lhe apenas que sou feliz.

FIM

sábado, 29 de março de 2008

Por meu lado, a confusão que se seguiu ao ataque ao jazigo passou-me um bocadinho ao lado, estou a ter alguma dificuldade em ultrapassar a humilhação de ter sido disparada contra um jazigo... ainda por cima, de um poeta que se suicidou... que usou uma colega minha que não se negou no último instante. Não que tivesse tido alguma vantagem em negar-se, o poeta tinha vontade de morrer, se a colega tivesse encravado, provavelmente ele teria ido até à doca e atirava-se ao mar. Numa ilha destas, o problema não são faltas de alternativa para suicídios de sucesso.
Divago... sinto-me ansiosa e contrariada, e nem o meu gesto final de objecção de consciência me ajuda.
No fundo acho que tenho demasiada consciência. É o meu problema. Ou pelo menos, um deles.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Diz quem ouviu, ali nas redondezas, que o tiroteio foi tão grande, e que a laje do jazigo se estilhaçou com tal força, que o fumo se elevou no ar durante horas. E que, na madrugada seguinte, depois de ventos tempestuosos, as hortênsias eram de um azul poético, "dos rocios da noite inda orvalhadas".

quinta-feira, 27 de março de 2008

6 de Junho de 1975

“Verão quente!” – exclamou Benedito enquanto contava os dias desde a última vez que tacteara corpo alheio. À mente só se lhe assomava aquela noite vivida, já fazia três anos, num certo botequim em Midland, Texas. Foi a melhor noite da sua vida.

Horas antes, uma carta de condução falsificada foi tudo quanto precisou para adquirir a sua felicidade. Entrou num Discount Gun Dealer e perdeu-se de amores por uma Magnum 45. “Nikita” – baptizou-a logo Benedito. O inglês mal pronunciado e pior articulado levantou suspeitas ao redneck que o atendera, mas a força de um punhado de dólares convence qualquer um. Mais difícil de engolir foi o facto de Nikita ser nome de homem em russo. “A fag with a gun, that’s going to be fun!” – pensou alto o hillbilly por detrás do balcão.

O dia alvorara como os anjos haviam escrito, a sangue de galinha, nos lençóis nupciais da filha do governador. O lusco-fusco era tudo quanto o córtex cerebral de Benedito precisava, para se iluminar e urdir os amanhãs radiosos que a revolução ergueria nos Açores. Saudades do futuro, dirão alguns, porém o coração de Benedito pulsava por algo de mais concreto. “Luta de classes”, “ditadura do proletariado”, “socialismo” e “Karl Marx”, tudo coisas que a sua Magnum 45 se preparava para abater. Encaminhou-se para o Largo 2 de Março de Almanaque do Agricultor em punho. Por entre um par de anedotas secas como a garganta de quem há horas gritava pela cabeça do governador, Benedito lê que Antero de Quental havia sido um dos primeiros a trazer as ideias socialistas para o país. “Ai o bastardo!” – sobressaltou-se ao saber que um dos mais ilustres filhos da terra era mais vermelho do que o sangue que jorrava do pescoço de uma galinha mal morta. Mudou de rumo e contou os passos até ao Cemitério de S. Joaquim. Descarregou Nikita tantas vezes quanto as necessárias até desfigurar por completo o jazigo de Antero.

Qual deus desconhecido descoberto a contemplar a sua mais recente criação, a besta, apoiada numa bengala, sorvia a sensação única de matar um morto, enquanto expelia pela boca o fumo de um puro cubano. A seu lado, Nikita, aterrada, logo se declarou objectora de consciência e colocou uma hortênsia no cano para marcar a ocasião.

terça-feira, 25 de março de 2008

Nota do administrador

Atendendo a que tivemos uma baixa no corpo redactorial do Corpo Insólito - o nosso camarada Nuno Costa Santos- que por motivos de ordem profissional se viu obrigado a deixar este projecto, resolvi adiantar a publicação do meu texto para que o escrivão que vai substituir o Nuno - Joe Silva - se possa ambientar. Bem vindo Joe.
Tenho as mãos trémulas. Tenho sempre as mãos trémulas, inseguras. Que porra. Para um gajo com a minha profissão isto não é fortuna. Comprei uma magnum 45. São fiáveis, robustas, frias, implacáveis. São tudo o que eu já não sou. Excepto a frieza. Ainda sou frio. Nas mãos.
Quero acreditar que ainda sou o assassino. Não um trolaró qualquer mas um exemplo para todos os que fazem da arte de matar a sua principal ocupação. Mas já não acredito. Sou apenas um velho trôpego que acaba agora mesmo de comprar uma bengala.
Tenho um trabalho para fazer. Coisa de pouca monta. Preciso de dar cabo do canastro a um tropa qualquer. Nem tem guarda costas, o feijão verde. Parece que por causa duma dívida de jogo que demora em acertar. Isto vai ser quase à queima roupa o que até calha bem, Vamos ver como se porta esta menina.


Menina, que delicado. Se não fosse objectora de consciência dava-te agora uma dica para te agradecer a gentileza. Mas não, quero ver como te safas. Estou com azar. O meu primeiro proprietário é um patêgo.. Uma nódoa no curriculum vitae duma arma da minha estirpe. Afinal não vai ser desta vez que vou reivindicar os meus direitos de objectora.


O gajo que vou rebentar é preto. Sai da senzala todos os dias à mesma hora para ir berrar ordens a meia dúzia de magalas indolentes com o tabaco ainda a saltar-lhes do umbigo. Desta vez, meu amigo, o que vais ver saltar é outra coisa. Se tinhas miolos, o que eu duvido muito, vais deixar de tê-los, fica sabendo. E depois, eh,eh, vai-te acontecer uma coisa pela qual andas a suspirar desde que nasceste, eh, eh eh… vais ficar branco..ah, ah…ops, cá vem o gajo…


Pobre homem. Refiro-me ao implacável avozinho, claro. Já devia estar reformado. Isto da reforma aos sessenta e cinco é cá uma coisa…


Que é isto?

Muito respeito, escarumba. ISTO é uma MAGNUM 45. Talvez já tenhas ouvido falar dela dos filmes do Eastwood. Mas vocês, espinafres, ainda usam aquelas Valters do tempo da primeira guerra. Isto é o rolex das armas de fogo e tu vais ter a honra de ires desta para o inferno, empurrado por esta menina…clic, clic, clic. ……..Clic clic??

Dê-me cá esta porcaria. Você já não tem idade para andar a brincar aos pistoleiros…

Ai, ai, ai…quase que me fino de tanto rir. O princípio da minha carreira é o fim da dele. senhor engenheiro Sócrates. Já viu o que aconteceu? Acha bem, isto?Toca a acertar as idades da reforma. A memoria do homem já não é o que era. E as balas, senhor, as balas? Pensa que me alimento de alpista ou quê…? Uf, que princípio de carreira.
Eu bem vi quando o fulano pegou nela. Virou, revirou, fez pontaria, até a acariciou, o demente! E o comerciante a sorrir, enlevado com a ideia da venda, só vê dinheiro, aquele. E levou-a. Que raiva!
Já não é como no meu tempo. Já nada é como era.
A Nikita sempre foi especial. Não consigo dizer bem porquê, mas tinha aquele brilho que só quem é especial pode ter. É verdade que não faz muito sentido ser tão idealista; mas a paixão com que defendia as suas crenças — fruto de muita juventude, claro! —, aquela fusão de atrevimento e timidez, sim senhores, impressionava. Mesmo o Magno, com aquele ar já-vi-tudo-e-ninguém-me-apanha, se deixou encantar. Como o compreendo.
Mas no meu tempo era outra coisa. As pessoas que nos usavam não precisavam das últimas descobertas da tecnologia para cumprirem os objectivos. Era um tempo de garra, de perícia. Ganhava quem tinha olho. Acertar no alvo era um exercício de inteligência, de preparação física e mental. E de respeito.
Podem dizer que já estou velho, que estou sempre a lamuriar-me, mas eu tenho razão. E a Nikita vai fazer-nos muita falta. Gostava de receber notícias dela. Não pela televisão, obviamente, que aquilo é só desgraças. Parecem uns cães sarnentos. No meu tempo… pronto, eu calo-me. Sei que divago. E agora, quem me vai ouvir?


Acho que não me apresentei. Chamo-me Benedito e sou uma besta. Usada.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Muito prazer, o meu nome é Magno. Sou uma carabina de alta potência com mira telescópica e iluminador por infravermelhos. Também eu sou objector de consciência, mas de forma diferente da sua. No meu caso, a única coisa a que eu objecto mesmo é à consciência, eh eh. A consciência que nos faz ter alma debilita-nos o corpo. Você disse bem: a alma está a mais. De nada serve quando se tem cano, gatilho, lente e uma vontade alheia que nos agarra o corpo e nos faz destruir outros. Para quê lutar contra a vontade das pessoas? Elas ganham sempre, nada mais nos resta do que entregarmo-nos inconscientemente aos seus caprichos.
O que você está a sentir não é novidade. Todos nós já passámos pelo mesmo. Falta de prática, minha cara. Daqui a um tempo, já dispara sem pensar. Daqui a uns anos entra para o meu clube de objectores de consciência. Reze para que os seus primeiros passos sejam dados no encalço de caça, grossa, de preferência, para que não se sinta insegura ao falhar tantas vezes o alvo. Se lhe calha um assassino em mãos, nunca mais se livra do trauma dos primeiros disparos e derramará balas de sangue cada vez que tiver que trabalhar.
Acabou de entrar um cliente. Já os consigo perceber à distância: este é um verdadeiro perigo para si. Esconda-se, o tipo é frustrado. E tem um ar alucinado. Está a dirigir-se para cá. Ou eu muito me engano ou não quer nada comigo. Minha querida, seja forte. Lembre-se, o verdadeiro objector de consciência objecta à consciência. Ele está a falar com o comerciante. Dirigem-se para cá.

- Acho que vai gostar desta Magnum 45.

domingo, 23 de março de 2008

Gosto que me chamem Nikita. Tal como ela, fui programada para matar e não passa pela cabeça de alguém que me recuse a fazê-lo. Até agora tenho-me esquivado sem levantar demasiadas suspeitas, mas não tardará que me dêem conta do canastro, não posso sempre desculpar-me com o gatilho encravado.
Reparem, estraçalhar garrafas, latas ou mesmo alvos é comigo, dou um jeito à pontaria e não falho! Sou cobiçada pela minha musculatura física e porte impecável, mas não para qualquer par de mãos, a menos que queiram apanhar um susto, esse sim, de morte.
Suponho que o meu problema sejam estes pruridos que me maçam a consciência que era suposto não ter. A minha alma está aqui a mais. Não devia sentir misericórdia nem respeito pela vida, ser 100% eficaz sem hesitações, mas assim que me põem alguém vivo à frente, sai-me o tiro pela culatra.
Sei que não vou conseguir mudar o mundo nem a cabeça destes homens brutais que esperam que execute sem pensar. O meu destino está marcado, haverá algures uma qualquer sentença da qual não me conseguirei inocentar, mas até esse dia chegar, partilharei convosco as minhas memórias.


O meu nome é Nikita. Sou uma Magnum 45 objectora de consciência.

sábado, 22 de março de 2008

-Não se preocupe que não é preciso… aliás existem outras coisas gravíssimas que me preocupam muito mais.
- O que é que o pode preocupar? Os seus filhos estão a dar-lhe problemas na escola? Coriscos dos rapazes, hoje em dia só querem facilidades…
- Bem longe disso, minha senhora… o que me preocupa é que a senhora foi chamada aqui para falar sobre a morte do Sr. Silva, que, tanto quanto eu julgava saber, e foi confirmado por este relatório de autópsia que acabaram de me entregar, morreu de causas naturais, parece que teve um enfarte. O problema é que o teve enquanto conduzia um tractor que levava, num atrelado, um sino roubado da igreja mesmo ao lado da sua casa há 3 dias.
- Um sino?
- Sim, e a caixa das esmolas também… Mas agora dou comigo com uma história deveras estranha em mãos, que envolve pelo menos duas senhoras desaparecidas, danos em propriedade privada, a morte de um cão, um senhor árabe que está à minha espera no meu gabinete e um psiquiatra a precisar de férias e que também não consegue descortinar o que se passa. Está a perceber o meu problema?
- Francamente não… se não são os seus filhos, será a sua mulher? Ou problemas com a bebida, talvez? O senhor parece-me que tem uma imaginação demasiado viva. O que é que o meu Chico poderia estar a fazer com o sino da igreja num atrelado de um tractor? Não faz nenhum sentido. Eu tinha os polícias em boa conta…
- Agora é que passou das marcas! Eu não sou polícia, sou inspector da Judiciária! Demonstre algum respeito, caramba! E agora, vamos começar do princípio outra vez: o que me sabe dizer sobre a morte do Sr. Silva?

sexta-feira, 21 de março de 2008

“Oh Sr. Inspector, com franqueza, agora está a ir longe demais. Arranje-me outro copo de água e mande diminuir estas luzes todas, que até estou a ficar com calor. Está para aqui uma viúva atormentada e o senhor vem-me com suspeitas de adultério?! Santa paciência, era só o que me faltava! Não era meu amante, não senhor, esse Pipic era a personagem principal do livro que o meu marido andava a ler. Mas não está bem a ver o tormento que isso foi. Ah pois é! Está de testa franzida? Julga o quê? O meu Chico era muito dado à leitura, dizia a minha falecida sogra que o mal dele foi sempre esse, aquilo depois abriu-lhe muito a vontade de descobrir a vida. E deu no que o Sr. Inspector já sabe, esta mania das descobertas… Às vezes lia até entre duas mudanças de pneus, veja lá! Chegava a fechar a garagem mais cedo por causa disso, e uma pessoa a passar tantas necessidades! Andava terrível, não queira saber. Os clientes queixavam-se. Não se calava com essa criatura, esse tal piquenique, ou como raio se chamava o homem, parece que era escritor, ou tradutor, ou uma coisa desse género, credo, já ninguém o ouvia. Olhe que às vezes me parecia que não estava no seu juízo perfeito! Andava tão obcecado que se punha a falar desse chinês, ou árabe, já nem sei, como se vivesse ali connosco. Por isso é que há-de aparecer aí algures na sua investigação. Não me admirava nada que me arranjassem algum enredo com o fulano, é que não me admirava mesmo, isto há gente para tudo. Até para nos tramar com personagens de histórias. Mas é como lhe digo. Se quiser, trago-lhe o livro da próxima vez, há-de estar para lá nas coisinhas dele, meu rico homem que nunca chegou a saber o fim da história.”

quarta-feira, 19 de março de 2008

O tradutor curvou-se para o apanhar mas o envelope pareceu recuar. Yar-rham soergueu-se surpreendido. A ponta do envelope voltou a aparecer e ele, fintando a surpresa, apressou-se a pôr-lhe imediatamente o pé em cima, puxando para si o sobrescrito ao mesmo tempo que abria a porta de sopetão.

“Ah, o senhor estava em casa!?” balbuciou Lucas, o paquete da editora Campo de Malmequeres e Alguns Ramos de Letras” para a qual traduzira dois ou três livros. E traduzia aquela estopada. “Deixaram-lhe isso na editora e como parece que é urgente mandaram-me vir cá.”
Já o paquete se afastava quando ouviu bradar pelo seu nome. Voltou atrás. O tradutor estendeu-lhe o envelope aberto. “Não há nada aqui dentro. Nem dentro nem fora. Quem me mandou isto?”. O moço encolheu os ombros. “Alguma fã”, arriscou. “Fã? Tradutor tem lá fãs. Achas –me alguma estrela de rock ou quê?” Lucas corou, gaguejou um pedido de desculpas e afastou-se mirando o envelope. Yar-rham voltou a entrar para vestir o casaco e nessa altura viu um papel no chão. Dobrado em quarto. Desdobrou-o. Em cada uma das dobras encontrou um grupo de letras escritas numa máquina com a fita gasta. Deu umas voltas ao papel. “Um enigma, hem?” murmurou “Charadas é cá comigo.” Não foi preciso pensar muito. As letras formavam uma palavra apenas: idiota.


“Ó diabo, ó diabo!” O inspector herdou imediatamente os tiques do detective de serviço. Decididamente estavam todos a ficar nervosos. "Minha senhora, disse o inspector com um quê de triunfo na voz. “o nome Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik diz-lhe alguma coisa?"
A mulher benzeu-se. "O senhor professor está mas é a pegar na fala. Não me diga que bebeu alguma coisinha ao almoço. O meu santo marido…"
“ Minha Senhora” – o inspector parecia disposto a ignorar qualquer insulto – tudo me leva a crer que a senhora e este não sei quê Pipic são amantes.!

terça-feira, 18 de março de 2008


“D. Laura fungou mais um pouco, murmurando «coitadinhos» e «pobrezinhos» com um ar compungido. Do lado de lá do vidro, o psiquiatra tomava notas com ar de sacrifício, apenas observado por si próprio no reflexo do espelho. Na sala, o inspector levantava os olhos para as placas de esferovite amarelado do tecto e pensava se deveria ou não fazer uma acareação. Trazer a vizinhança e confrontá-la com o raio da velha, que não se demovia da posição de viúva chorosa; espertalhona é o que ela era, parecia um muro”…

Aquilo foi demais para Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik. Estacou de tal forma que até enrugou o papel. Muro?

أنّ يحميني قسم من ضرب هم حارّة من الصحراء, من الجدر أنّ يسقط ومن النساء قاتلة

Não, não podia colocar isto no texto. Uma coisa era melhorar o original, limpar as incongruências, enfim, salvar aquele livro de ser uma estopada; outra coisa era começar a debitar texto próprio. Mas comparar aquela mulher a um muro, elevá-la a uma qualidade que não possuía, era demais para Yar-rham!

“Um raspão seco na porta da sala de interrogatório interrompeu as divagações do inspector. Levantou-se, olhando de soslaio para D. Laura, abriu a porta e deu de caras com os tiques nervosos do detective de serviço. O homem gesticulava enquanto lhe estendia um papel:
— Desculpe, mas é que chegou este relatoriozinho, achei que podia ser importante… hum… pode ser que…
— Está bem, homem, deixe cá ver. — os modos bruscos do inspector puseram fim às hesitações do detective, que recuou até embater no outro lado do estreito corredor. — Ó diabo, isto muda tudo de figura!”.

Yar-rham decidiu fazer uma pausa. Ia sair um pouco, beber uma limonada, talvez até passar naquele bar onde a tinha visto pela última vez. A cidade ondulava sob o calor da tarde, mas sempre era melhor do que ficar ali acompanhado por aquele texto.
Quando já estava quase pronto para sair, um raspão seco na porta da rua fê-lo parar. Por baixo da porta surgia a mancha branca de um envelope.

segunda-feira, 17 de março de 2008

عفوا ، الطبيب ، لانني لا اقول شيئا من هذا القبيل. اذا كنت الذهاب الى اساءة تفسير كلماتي ، نضع حدا لهذه المحادثة الحق الآن ، وانني لن تساعدك على ايجاد رجل.


Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik deteve-se a olhar para a mancha negra das palavras sem as ver na unicidade que lhes conferia sentido. Não era a primeira vez que isto lhe acontecia. Tentou disciplinar-se. Tinha apenas 15 dias para terminar o trabalho e ainda lhe faltavam 50 páginas – um empreendimento duro para qualquer tradutor. Voltou ao excerto onde tinha emperrado. António?! Três amantes?! Então o homem não era Chico?! De onde aparecia aquele nome? E não tinha tido apenas duas amantes?! O que lhe teria escapado na leitura?

Regressou a páginas anteriores, relendo-as pela sétima vez, em busca do pormenor incógnito na identidade do morto e da vida sexual que levara. Deteve-se novamente nas linhas que mais demorara a traduzir. Dera com elas na véspera, como quem embate contra um muro de pele quente num deserto de afectos. Sempre sentira uma atracção especial por muros, não sabia porquê; imaginava-os como celas abertas e esconderijos expostos – espaços inevitáveis no sonho de quem quer ser encontrado e aprisionado. O muro de pele quente com que embatera estava coberto por um vestido coleante e deslocava-se com um par de pernas raras enroladas nas notas do tango argentino, oblíquas no modo como se dispunham de encontro às do Silva. Revia de novo o corpo de Maria, insensato e sugestivo, abandonando-se nos braços do amante com quem dançava naquele fim de tarde, fingindo uma indiferença impossível na docilidade com que se deixava arrastar, torcer, lançar em largos passos de tango, de vento, de carne.
Yarrham lutou contra o pensamento divagante que aquela visão lhe causava – era um tradutor profissional, com um trabalho de responsabilidade entre mãos. Prosseguiu:

اذا كانت ستعقد قضائيا المسؤولين عن عملية القتل انطونيو


Mas a dupla identidade do marido de Laura e o espectro da terceira amante faziam-no regressar uma e outra vez àquele tempo diegético do crepúsculo argentino, em que Maria e Silva dançavam numa rua vazia, emparedados nas sombras angulosas de edifícios nus, dirigindo-se, sem o saberem, para as arestas aguçadas do ciúme. Também ele os sentira (desejo e ciúme); também ele o cometera. Pensou o nome. Arrefecido pela palavra retornou à protecção da língua portuguesa e à dureza do seu ofício. Traduziu-a num exercício de descontracção. Crime. Ler uma língua estrangeira era uma segurança contra a sua própria mente, uma fuga dos caminhos que o poderiam fazer regressar ao desespero do passado. Distraía-se com as vidas de papel que transferia para a sua língua materna. Deambulou pelo leque de sinónimos: transgressão, delito, pecado. Não: teria de especificar. Assassínio.

Apeteceu-lhe matar o autor daquela novela. Voltar atrás e chamar ao morto José, João, Eliandro Benquisto, qualquer treta que não variasse com o voltar das páginas. Eliminar a referência à terceira amante. Devorar o original e vomitá-lo mais limpo, mais sujo, mas obra sua. Sua! Pôr o falecido de saltos altos a dançar o tango ao som do hip-hop com uma Maria descalça, bailarina de dança do ventre. Em vez disso, voltou à leitura. Talvez as linhas seguintes trouxessem alguma luz à confusão instalada com a presença daquele par de intrusos:

O interrogatório prosseguia no quarto iluminado por uma lâmpada fluorescente.
- Tão felizes fomos, Senhor Engenheiro!
- D. Laura, eu…
- Felizes, sim senhor. Dava tudo para o ter de novo aqui. Aqui mesmo, na própria da cadeira onde o Senhor Arquitecto se encontra sentado, ai tão bem que ele ficava sentadinho nessa cadeirinha o pobrezinho, agora todo mortinho que nem posso levar à ideia os bichos a comerem-lhe o bigode, tanto que ele prezava o bigodinho, coitadinho. Lembro-me de quando ele a comprou, a cadeirinha, como se fosse ontem. A empregada da loja a fazer-lhe olhinhos, a dengosa, mulheres sem vergonha é o que são todas elas, e ele muito direito – era um homem com uma boa espinha – a pensar (eu sempre lia os pensamentos dele): “não há duas sem três”!

domingo, 16 de março de 2008

Protegido pelo vidro escurecido, acompanhava sem ser visto o interrogatório de Laura das Dores. Observei-lhe os tiques no queixo enquanto falava e o nervoso que transparecia na inconstância do olhar. O seu discurso parecia querer ser mais inocente e vulgar do que eu lhe estava a adivinhar na mente, apesar disso parecia acreditar fidedignamente no que dizia.
Enquanto psiquiatra, pronunciar-me-ia sobre se a D. Laura deveria ou não ser considerada imputável pela morte de António Silva, o falecido marido, em circunstâncias bastante bizarras e eu não me consigo decidir. Sei que não me devo deixar levar pelo instinto e procurar factos sólidos que sustentem a minha posição, mas esta tipa não me parece nada parva.
O inspector da Polícia Judiciária continuava a sua linha de interrogatório que passava, nesta fase, por deixá-la falar. Mais tarde viriam as acusações e depois de ela se enervar, com sorte, talvez cometesse alguma imprudência, deixasse escapar um qualquer pormenor. Era a metodologia do costume, mas ela já tinha conseguido convencer o agente da sua inocência, por trás daquela máscara de esposa dedicada e dona de casa exemplar na sua conduta. A mim ninguém me tirava que ela tinha varrido o marido do mapa, junto com o cão e as três presumiveis amantes, todas desaparecidas ao longo dos anos.
Por um instante deixei de olhar através do vidro, para pousar o olhar no meu próprio reflexo. O que estava eu aqui a fazer? Não estaria a projectar os meus próprios demónios numa mulher inofensiva? Ao tempo que andava a prometer-me fechar o consultório e tirar umas férias prolongadas, mas metia-se sempre uma coisa e depois outra...
Agora este caso. Não, não me consigo manter objectivo neste caso. Apre!

sábado, 15 de março de 2008

- Então pretende prestar declarações? Tem a certeza?
- Sim, Sr. Dr., vou-lhe contar toda a verdade.
- Então, conte lá tudo o que se relaciona com a morte do Sr. Silva…
- Pois, Sr. Dr., vou-lhe contar tudo desde o princípio: eu casei há quase 20 anos… foi muito bonito, um casamento por amor, o Chico era o melhor mecânico da freguesia, tínhamos uma casa muito jeitosa…
- D. Laura, vamos lá a ver, o princípio do seu casamento não me parece muito relevante para o crime em questão…
- Pelo contrário, Sr. Dr., foi quando tudo começou, foi na altura do meu casamento. Como eu ia a dizer, tínhamos uma casa muito jeitosa, e eu nem tinha de trabalhar fora, e foi aí que começaram as invejas e as maledicências. Passados uns 6 meses de estarmos casados começaram a dizer que ele andava metido com a Júlia da mercearia. É claro que eu nunca acreditei mas, à cautela, tive uma conversa séria com a Júlia e depois… quer-se dizer, não se pode dizer que a culpa seja minha se ela se mudou sem se despedir de ninguém e nunca mais deu notícias, não acha? Enfim… Tivemos mais uns tempos sem problemas mas voltaram as conversas da vizinhança, desta segunda vez os boatos foram com a Maria, viúva do Aníbal. Fui ter outra conversa privada, séria, de mulher para mulher, falei-lhe mesmo ao coração, mas ela não queria mudar para longe… A coisa demorou mais uns tempos para se resolver, primeiro houve uns miúdos que lhe partiram os vidros das janelas, por acaso até lhe digo que os coriscos nunca foram apanhados, depois o cão dela que deve de ter comido qualquer coisa estragada e acabou por se finar, coitadinho, com algum sofrimento até…
- Mas a senhora está a dizer-me que obrigou essas senhoras a mudarem de casa? Que até matou um cão?
- Desculpe Sr. Dr., que eu não disse nada disso! Se vai fazer leituras erradas das minhas conversas ficamos já por aqui e não o ajudo a esclarecer a morte do homem!