quinta-feira, 29 de maio de 2008

O arco da porta principal voltou a atravessar-se por cima de mim. O fumo elevava-se da calçada que cobria o chão do vestíbulo, como se uma chuvada se tivesse abatido sobre ela após ter sido fustigada por um sol tórrido. Mas naquele findar de dia nem uma gota de água ali pousara e o frio entrava ossos dentro. Baixei o cigarro da boca até ao luxuriante musgo que me dava pela cintura, para largar um pouco de cinza, e o fumo desapareceu.

“Tens de ir ao oftalmologista!” – agoiro sinistro que me carregou a mente, por um bom par de minutos, e que me feria os tímpanos todas as noites quando ia dormir e escutava, através da mal construída parede, a mulher do vizinho a chagar o marido. Nem aqui, neste recanto perdido entre a Fajã de Baixo e a Fajã de Cima, se Ponta Delgada me deixa em paz.

Uma voz emudecida pelos séculos germinava por entre o musgo da prateleira descaída para o lado esquerdo que havia sido particularmente calejada pelo tempo. “Três reis morreram, três reis morreram…” – consegui discernir ao levantar um velho número do Açoriano Oriental que apodrecia sobre ela. “Suponho que não sejas rei, porque os mortos não falam e isso aqui é muito húmido para ser Alcácer-Quibir.” – retorqui-lhe, para logo ser arrebatada pela dissipação da dúvida que há muito me corroía: “Já não precisas de aspirar a que o teu vizinho te faça bonitas odes na Internet, como em tempos fez à Madame Büttant, podes fazer a ti própria as melhores odes do mundo.”

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