domingo, 30 de março de 2008

Tantas alvoradas já, desde aquele dia amanhecido a sangue de galinha, que me falha a memória, amarelecida pelo gastar dos anos. O meu corpo, esse, contínua impecável, regularmente desmontado e oleado com um desvelo tocante, por um par de mãos progressivamente gasto também, mas sempre com o mesmo carinho. Estas são as mãos que sempre desejei me possuissem e consola-me saber que ficaremos juntos para sempre, mesmo depois das ossadas dele serem pó, naquele imponente jazigo de família.

Cheguei aqui em muito mau estado, com a auto-estima numa lástima. Isto de matar um morto e escavacar uma pedra tumular destabiliza qualquer revólver! De tal forma que lembro apenas uns quantos flashes desse período, o resto escutei aqui, nas tertúlias que preenchem as tardes soalheiras. Consta que andei perdida algum tempo, na clandestinidade. Resgatada, fui etiquetada, a minha proveniência conferida e subi a leilão na Sotheby´s, parte de um espólio do qual não guardo memória.

Do que lembro bem é daquele rosto severo de olhos mansos deleitados sobre mim, as mãos possantes, uma segurando o catálogo e a outra um pingalim, que elevava sempre que outra licitação se ouvia. Soube imediatamente que estavamos destinados e que nunca me faria disparar sobre vivalma. Tem-me aqui desde esse dia, nesta espécie de altar a Antero de Quental, numa caixa de vidro e madeira ricamente adornada. Repouso assim, nesta cama de veludo carmim, qual princesa adormecida numa redoma, ao lado de dois pedaços de granito que reconheço bem. Para uma objectora de consciência, a vida não me podia ter corrido melhor, sobretudo hoje, que soube o que o destino me reservava, quando veio o advogado conferir os termos do novo testamento. Eu e aquele livro quase desfeito, que chegou há umas semanas do alfarrabista do Bairro Alto. Não sei quem seja, nem quem o terá escrito, mas teremos toda a eternidade para pôr a conversa em dia, espero que ele não se desmanche antes disso!

Se se cruzarem um dia destes com o Magno, pobre coitado sem alma nem jeito de piedade, digam-lhe apenas que sou feliz.

FIM

sábado, 29 de março de 2008

Por meu lado, a confusão que se seguiu ao ataque ao jazigo passou-me um bocadinho ao lado, estou a ter alguma dificuldade em ultrapassar a humilhação de ter sido disparada contra um jazigo... ainda por cima, de um poeta que se suicidou... que usou uma colega minha que não se negou no último instante. Não que tivesse tido alguma vantagem em negar-se, o poeta tinha vontade de morrer, se a colega tivesse encravado, provavelmente ele teria ido até à doca e atirava-se ao mar. Numa ilha destas, o problema não são faltas de alternativa para suicídios de sucesso.
Divago... sinto-me ansiosa e contrariada, e nem o meu gesto final de objecção de consciência me ajuda.
No fundo acho que tenho demasiada consciência. É o meu problema. Ou pelo menos, um deles.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Diz quem ouviu, ali nas redondezas, que o tiroteio foi tão grande, e que a laje do jazigo se estilhaçou com tal força, que o fumo se elevou no ar durante horas. E que, na madrugada seguinte, depois de ventos tempestuosos, as hortênsias eram de um azul poético, "dos rocios da noite inda orvalhadas".

quinta-feira, 27 de março de 2008

6 de Junho de 1975

“Verão quente!” – exclamou Benedito enquanto contava os dias desde a última vez que tacteara corpo alheio. À mente só se lhe assomava aquela noite vivida, já fazia três anos, num certo botequim em Midland, Texas. Foi a melhor noite da sua vida.

Horas antes, uma carta de condução falsificada foi tudo quanto precisou para adquirir a sua felicidade. Entrou num Discount Gun Dealer e perdeu-se de amores por uma Magnum 45. “Nikita” – baptizou-a logo Benedito. O inglês mal pronunciado e pior articulado levantou suspeitas ao redneck que o atendera, mas a força de um punhado de dólares convence qualquer um. Mais difícil de engolir foi o facto de Nikita ser nome de homem em russo. “A fag with a gun, that’s going to be fun!” – pensou alto o hillbilly por detrás do balcão.

O dia alvorara como os anjos haviam escrito, a sangue de galinha, nos lençóis nupciais da filha do governador. O lusco-fusco era tudo quanto o córtex cerebral de Benedito precisava, para se iluminar e urdir os amanhãs radiosos que a revolução ergueria nos Açores. Saudades do futuro, dirão alguns, porém o coração de Benedito pulsava por algo de mais concreto. “Luta de classes”, “ditadura do proletariado”, “socialismo” e “Karl Marx”, tudo coisas que a sua Magnum 45 se preparava para abater. Encaminhou-se para o Largo 2 de Março de Almanaque do Agricultor em punho. Por entre um par de anedotas secas como a garganta de quem há horas gritava pela cabeça do governador, Benedito lê que Antero de Quental havia sido um dos primeiros a trazer as ideias socialistas para o país. “Ai o bastardo!” – sobressaltou-se ao saber que um dos mais ilustres filhos da terra era mais vermelho do que o sangue que jorrava do pescoço de uma galinha mal morta. Mudou de rumo e contou os passos até ao Cemitério de S. Joaquim. Descarregou Nikita tantas vezes quanto as necessárias até desfigurar por completo o jazigo de Antero.

Qual deus desconhecido descoberto a contemplar a sua mais recente criação, a besta, apoiada numa bengala, sorvia a sensação única de matar um morto, enquanto expelia pela boca o fumo de um puro cubano. A seu lado, Nikita, aterrada, logo se declarou objectora de consciência e colocou uma hortênsia no cano para marcar a ocasião.

terça-feira, 25 de março de 2008

Nota do administrador

Atendendo a que tivemos uma baixa no corpo redactorial do Corpo Insólito - o nosso camarada Nuno Costa Santos- que por motivos de ordem profissional se viu obrigado a deixar este projecto, resolvi adiantar a publicação do meu texto para que o escrivão que vai substituir o Nuno - Joe Silva - se possa ambientar. Bem vindo Joe.
Tenho as mãos trémulas. Tenho sempre as mãos trémulas, inseguras. Que porra. Para um gajo com a minha profissão isto não é fortuna. Comprei uma magnum 45. São fiáveis, robustas, frias, implacáveis. São tudo o que eu já não sou. Excepto a frieza. Ainda sou frio. Nas mãos.
Quero acreditar que ainda sou o assassino. Não um trolaró qualquer mas um exemplo para todos os que fazem da arte de matar a sua principal ocupação. Mas já não acredito. Sou apenas um velho trôpego que acaba agora mesmo de comprar uma bengala.
Tenho um trabalho para fazer. Coisa de pouca monta. Preciso de dar cabo do canastro a um tropa qualquer. Nem tem guarda costas, o feijão verde. Parece que por causa duma dívida de jogo que demora em acertar. Isto vai ser quase à queima roupa o que até calha bem, Vamos ver como se porta esta menina.


Menina, que delicado. Se não fosse objectora de consciência dava-te agora uma dica para te agradecer a gentileza. Mas não, quero ver como te safas. Estou com azar. O meu primeiro proprietário é um patêgo.. Uma nódoa no curriculum vitae duma arma da minha estirpe. Afinal não vai ser desta vez que vou reivindicar os meus direitos de objectora.


O gajo que vou rebentar é preto. Sai da senzala todos os dias à mesma hora para ir berrar ordens a meia dúzia de magalas indolentes com o tabaco ainda a saltar-lhes do umbigo. Desta vez, meu amigo, o que vais ver saltar é outra coisa. Se tinhas miolos, o que eu duvido muito, vais deixar de tê-los, fica sabendo. E depois, eh,eh, vai-te acontecer uma coisa pela qual andas a suspirar desde que nasceste, eh, eh eh… vais ficar branco..ah, ah…ops, cá vem o gajo…


Pobre homem. Refiro-me ao implacável avozinho, claro. Já devia estar reformado. Isto da reforma aos sessenta e cinco é cá uma coisa…


Que é isto?

Muito respeito, escarumba. ISTO é uma MAGNUM 45. Talvez já tenhas ouvido falar dela dos filmes do Eastwood. Mas vocês, espinafres, ainda usam aquelas Valters do tempo da primeira guerra. Isto é o rolex das armas de fogo e tu vais ter a honra de ires desta para o inferno, empurrado por esta menina…clic, clic, clic. ……..Clic clic??

Dê-me cá esta porcaria. Você já não tem idade para andar a brincar aos pistoleiros…

Ai, ai, ai…quase que me fino de tanto rir. O princípio da minha carreira é o fim da dele. senhor engenheiro Sócrates. Já viu o que aconteceu? Acha bem, isto?Toca a acertar as idades da reforma. A memoria do homem já não é o que era. E as balas, senhor, as balas? Pensa que me alimento de alpista ou quê…? Uf, que princípio de carreira.
Eu bem vi quando o fulano pegou nela. Virou, revirou, fez pontaria, até a acariciou, o demente! E o comerciante a sorrir, enlevado com a ideia da venda, só vê dinheiro, aquele. E levou-a. Que raiva!
Já não é como no meu tempo. Já nada é como era.
A Nikita sempre foi especial. Não consigo dizer bem porquê, mas tinha aquele brilho que só quem é especial pode ter. É verdade que não faz muito sentido ser tão idealista; mas a paixão com que defendia as suas crenças — fruto de muita juventude, claro! —, aquela fusão de atrevimento e timidez, sim senhores, impressionava. Mesmo o Magno, com aquele ar já-vi-tudo-e-ninguém-me-apanha, se deixou encantar. Como o compreendo.
Mas no meu tempo era outra coisa. As pessoas que nos usavam não precisavam das últimas descobertas da tecnologia para cumprirem os objectivos. Era um tempo de garra, de perícia. Ganhava quem tinha olho. Acertar no alvo era um exercício de inteligência, de preparação física e mental. E de respeito.
Podem dizer que já estou velho, que estou sempre a lamuriar-me, mas eu tenho razão. E a Nikita vai fazer-nos muita falta. Gostava de receber notícias dela. Não pela televisão, obviamente, que aquilo é só desgraças. Parecem uns cães sarnentos. No meu tempo… pronto, eu calo-me. Sei que divago. E agora, quem me vai ouvir?


Acho que não me apresentei. Chamo-me Benedito e sou uma besta. Usada.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Muito prazer, o meu nome é Magno. Sou uma carabina de alta potência com mira telescópica e iluminador por infravermelhos. Também eu sou objector de consciência, mas de forma diferente da sua. No meu caso, a única coisa a que eu objecto mesmo é à consciência, eh eh. A consciência que nos faz ter alma debilita-nos o corpo. Você disse bem: a alma está a mais. De nada serve quando se tem cano, gatilho, lente e uma vontade alheia que nos agarra o corpo e nos faz destruir outros. Para quê lutar contra a vontade das pessoas? Elas ganham sempre, nada mais nos resta do que entregarmo-nos inconscientemente aos seus caprichos.
O que você está a sentir não é novidade. Todos nós já passámos pelo mesmo. Falta de prática, minha cara. Daqui a um tempo, já dispara sem pensar. Daqui a uns anos entra para o meu clube de objectores de consciência. Reze para que os seus primeiros passos sejam dados no encalço de caça, grossa, de preferência, para que não se sinta insegura ao falhar tantas vezes o alvo. Se lhe calha um assassino em mãos, nunca mais se livra do trauma dos primeiros disparos e derramará balas de sangue cada vez que tiver que trabalhar.
Acabou de entrar um cliente. Já os consigo perceber à distância: este é um verdadeiro perigo para si. Esconda-se, o tipo é frustrado. E tem um ar alucinado. Está a dirigir-se para cá. Ou eu muito me engano ou não quer nada comigo. Minha querida, seja forte. Lembre-se, o verdadeiro objector de consciência objecta à consciência. Ele está a falar com o comerciante. Dirigem-se para cá.

- Acho que vai gostar desta Magnum 45.

domingo, 23 de março de 2008

Gosto que me chamem Nikita. Tal como ela, fui programada para matar e não passa pela cabeça de alguém que me recuse a fazê-lo. Até agora tenho-me esquivado sem levantar demasiadas suspeitas, mas não tardará que me dêem conta do canastro, não posso sempre desculpar-me com o gatilho encravado.
Reparem, estraçalhar garrafas, latas ou mesmo alvos é comigo, dou um jeito à pontaria e não falho! Sou cobiçada pela minha musculatura física e porte impecável, mas não para qualquer par de mãos, a menos que queiram apanhar um susto, esse sim, de morte.
Suponho que o meu problema sejam estes pruridos que me maçam a consciência que era suposto não ter. A minha alma está aqui a mais. Não devia sentir misericórdia nem respeito pela vida, ser 100% eficaz sem hesitações, mas assim que me põem alguém vivo à frente, sai-me o tiro pela culatra.
Sei que não vou conseguir mudar o mundo nem a cabeça destes homens brutais que esperam que execute sem pensar. O meu destino está marcado, haverá algures uma qualquer sentença da qual não me conseguirei inocentar, mas até esse dia chegar, partilharei convosco as minhas memórias.


O meu nome é Nikita. Sou uma Magnum 45 objectora de consciência.

sábado, 22 de março de 2008

-Não se preocupe que não é preciso… aliás existem outras coisas gravíssimas que me preocupam muito mais.
- O que é que o pode preocupar? Os seus filhos estão a dar-lhe problemas na escola? Coriscos dos rapazes, hoje em dia só querem facilidades…
- Bem longe disso, minha senhora… o que me preocupa é que a senhora foi chamada aqui para falar sobre a morte do Sr. Silva, que, tanto quanto eu julgava saber, e foi confirmado por este relatório de autópsia que acabaram de me entregar, morreu de causas naturais, parece que teve um enfarte. O problema é que o teve enquanto conduzia um tractor que levava, num atrelado, um sino roubado da igreja mesmo ao lado da sua casa há 3 dias.
- Um sino?
- Sim, e a caixa das esmolas também… Mas agora dou comigo com uma história deveras estranha em mãos, que envolve pelo menos duas senhoras desaparecidas, danos em propriedade privada, a morte de um cão, um senhor árabe que está à minha espera no meu gabinete e um psiquiatra a precisar de férias e que também não consegue descortinar o que se passa. Está a perceber o meu problema?
- Francamente não… se não são os seus filhos, será a sua mulher? Ou problemas com a bebida, talvez? O senhor parece-me que tem uma imaginação demasiado viva. O que é que o meu Chico poderia estar a fazer com o sino da igreja num atrelado de um tractor? Não faz nenhum sentido. Eu tinha os polícias em boa conta…
- Agora é que passou das marcas! Eu não sou polícia, sou inspector da Judiciária! Demonstre algum respeito, caramba! E agora, vamos começar do princípio outra vez: o que me sabe dizer sobre a morte do Sr. Silva?

sexta-feira, 21 de março de 2008

“Oh Sr. Inspector, com franqueza, agora está a ir longe demais. Arranje-me outro copo de água e mande diminuir estas luzes todas, que até estou a ficar com calor. Está para aqui uma viúva atormentada e o senhor vem-me com suspeitas de adultério?! Santa paciência, era só o que me faltava! Não era meu amante, não senhor, esse Pipic era a personagem principal do livro que o meu marido andava a ler. Mas não está bem a ver o tormento que isso foi. Ah pois é! Está de testa franzida? Julga o quê? O meu Chico era muito dado à leitura, dizia a minha falecida sogra que o mal dele foi sempre esse, aquilo depois abriu-lhe muito a vontade de descobrir a vida. E deu no que o Sr. Inspector já sabe, esta mania das descobertas… Às vezes lia até entre duas mudanças de pneus, veja lá! Chegava a fechar a garagem mais cedo por causa disso, e uma pessoa a passar tantas necessidades! Andava terrível, não queira saber. Os clientes queixavam-se. Não se calava com essa criatura, esse tal piquenique, ou como raio se chamava o homem, parece que era escritor, ou tradutor, ou uma coisa desse género, credo, já ninguém o ouvia. Olhe que às vezes me parecia que não estava no seu juízo perfeito! Andava tão obcecado que se punha a falar desse chinês, ou árabe, já nem sei, como se vivesse ali connosco. Por isso é que há-de aparecer aí algures na sua investigação. Não me admirava nada que me arranjassem algum enredo com o fulano, é que não me admirava mesmo, isto há gente para tudo. Até para nos tramar com personagens de histórias. Mas é como lhe digo. Se quiser, trago-lhe o livro da próxima vez, há-de estar para lá nas coisinhas dele, meu rico homem que nunca chegou a saber o fim da história.”

quarta-feira, 19 de março de 2008

O tradutor curvou-se para o apanhar mas o envelope pareceu recuar. Yar-rham soergueu-se surpreendido. A ponta do envelope voltou a aparecer e ele, fintando a surpresa, apressou-se a pôr-lhe imediatamente o pé em cima, puxando para si o sobrescrito ao mesmo tempo que abria a porta de sopetão.

“Ah, o senhor estava em casa!?” balbuciou Lucas, o paquete da editora Campo de Malmequeres e Alguns Ramos de Letras” para a qual traduzira dois ou três livros. E traduzia aquela estopada. “Deixaram-lhe isso na editora e como parece que é urgente mandaram-me vir cá.”
Já o paquete se afastava quando ouviu bradar pelo seu nome. Voltou atrás. O tradutor estendeu-lhe o envelope aberto. “Não há nada aqui dentro. Nem dentro nem fora. Quem me mandou isto?”. O moço encolheu os ombros. “Alguma fã”, arriscou. “Fã? Tradutor tem lá fãs. Achas –me alguma estrela de rock ou quê?” Lucas corou, gaguejou um pedido de desculpas e afastou-se mirando o envelope. Yar-rham voltou a entrar para vestir o casaco e nessa altura viu um papel no chão. Dobrado em quarto. Desdobrou-o. Em cada uma das dobras encontrou um grupo de letras escritas numa máquina com a fita gasta. Deu umas voltas ao papel. “Um enigma, hem?” murmurou “Charadas é cá comigo.” Não foi preciso pensar muito. As letras formavam uma palavra apenas: idiota.


“Ó diabo, ó diabo!” O inspector herdou imediatamente os tiques do detective de serviço. Decididamente estavam todos a ficar nervosos. "Minha senhora, disse o inspector com um quê de triunfo na voz. “o nome Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik diz-lhe alguma coisa?"
A mulher benzeu-se. "O senhor professor está mas é a pegar na fala. Não me diga que bebeu alguma coisinha ao almoço. O meu santo marido…"
“ Minha Senhora” – o inspector parecia disposto a ignorar qualquer insulto – tudo me leva a crer que a senhora e este não sei quê Pipic são amantes.!

terça-feira, 18 de março de 2008


“D. Laura fungou mais um pouco, murmurando «coitadinhos» e «pobrezinhos» com um ar compungido. Do lado de lá do vidro, o psiquiatra tomava notas com ar de sacrifício, apenas observado por si próprio no reflexo do espelho. Na sala, o inspector levantava os olhos para as placas de esferovite amarelado do tecto e pensava se deveria ou não fazer uma acareação. Trazer a vizinhança e confrontá-la com o raio da velha, que não se demovia da posição de viúva chorosa; espertalhona é o que ela era, parecia um muro”…

Aquilo foi demais para Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik. Estacou de tal forma que até enrugou o papel. Muro?

أنّ يحميني قسم من ضرب هم حارّة من الصحراء, من الجدر أنّ يسقط ومن النساء قاتلة

Não, não podia colocar isto no texto. Uma coisa era melhorar o original, limpar as incongruências, enfim, salvar aquele livro de ser uma estopada; outra coisa era começar a debitar texto próprio. Mas comparar aquela mulher a um muro, elevá-la a uma qualidade que não possuía, era demais para Yar-rham!

“Um raspão seco na porta da sala de interrogatório interrompeu as divagações do inspector. Levantou-se, olhando de soslaio para D. Laura, abriu a porta e deu de caras com os tiques nervosos do detective de serviço. O homem gesticulava enquanto lhe estendia um papel:
— Desculpe, mas é que chegou este relatoriozinho, achei que podia ser importante… hum… pode ser que…
— Está bem, homem, deixe cá ver. — os modos bruscos do inspector puseram fim às hesitações do detective, que recuou até embater no outro lado do estreito corredor. — Ó diabo, isto muda tudo de figura!”.

Yar-rham decidiu fazer uma pausa. Ia sair um pouco, beber uma limonada, talvez até passar naquele bar onde a tinha visto pela última vez. A cidade ondulava sob o calor da tarde, mas sempre era melhor do que ficar ali acompanhado por aquele texto.
Quando já estava quase pronto para sair, um raspão seco na porta da rua fê-lo parar. Por baixo da porta surgia a mancha branca de um envelope.

segunda-feira, 17 de março de 2008

عفوا ، الطبيب ، لانني لا اقول شيئا من هذا القبيل. اذا كنت الذهاب الى اساءة تفسير كلماتي ، نضع حدا لهذه المحادثة الحق الآن ، وانني لن تساعدك على ايجاد رجل.


Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik deteve-se a olhar para a mancha negra das palavras sem as ver na unicidade que lhes conferia sentido. Não era a primeira vez que isto lhe acontecia. Tentou disciplinar-se. Tinha apenas 15 dias para terminar o trabalho e ainda lhe faltavam 50 páginas – um empreendimento duro para qualquer tradutor. Voltou ao excerto onde tinha emperrado. António?! Três amantes?! Então o homem não era Chico?! De onde aparecia aquele nome? E não tinha tido apenas duas amantes?! O que lhe teria escapado na leitura?

Regressou a páginas anteriores, relendo-as pela sétima vez, em busca do pormenor incógnito na identidade do morto e da vida sexual que levara. Deteve-se novamente nas linhas que mais demorara a traduzir. Dera com elas na véspera, como quem embate contra um muro de pele quente num deserto de afectos. Sempre sentira uma atracção especial por muros, não sabia porquê; imaginava-os como celas abertas e esconderijos expostos – espaços inevitáveis no sonho de quem quer ser encontrado e aprisionado. O muro de pele quente com que embatera estava coberto por um vestido coleante e deslocava-se com um par de pernas raras enroladas nas notas do tango argentino, oblíquas no modo como se dispunham de encontro às do Silva. Revia de novo o corpo de Maria, insensato e sugestivo, abandonando-se nos braços do amante com quem dançava naquele fim de tarde, fingindo uma indiferença impossível na docilidade com que se deixava arrastar, torcer, lançar em largos passos de tango, de vento, de carne.
Yarrham lutou contra o pensamento divagante que aquela visão lhe causava – era um tradutor profissional, com um trabalho de responsabilidade entre mãos. Prosseguiu:

اذا كانت ستعقد قضائيا المسؤولين عن عملية القتل انطونيو


Mas a dupla identidade do marido de Laura e o espectro da terceira amante faziam-no regressar uma e outra vez àquele tempo diegético do crepúsculo argentino, em que Maria e Silva dançavam numa rua vazia, emparedados nas sombras angulosas de edifícios nus, dirigindo-se, sem o saberem, para as arestas aguçadas do ciúme. Também ele os sentira (desejo e ciúme); também ele o cometera. Pensou o nome. Arrefecido pela palavra retornou à protecção da língua portuguesa e à dureza do seu ofício. Traduziu-a num exercício de descontracção. Crime. Ler uma língua estrangeira era uma segurança contra a sua própria mente, uma fuga dos caminhos que o poderiam fazer regressar ao desespero do passado. Distraía-se com as vidas de papel que transferia para a sua língua materna. Deambulou pelo leque de sinónimos: transgressão, delito, pecado. Não: teria de especificar. Assassínio.

Apeteceu-lhe matar o autor daquela novela. Voltar atrás e chamar ao morto José, João, Eliandro Benquisto, qualquer treta que não variasse com o voltar das páginas. Eliminar a referência à terceira amante. Devorar o original e vomitá-lo mais limpo, mais sujo, mas obra sua. Sua! Pôr o falecido de saltos altos a dançar o tango ao som do hip-hop com uma Maria descalça, bailarina de dança do ventre. Em vez disso, voltou à leitura. Talvez as linhas seguintes trouxessem alguma luz à confusão instalada com a presença daquele par de intrusos:

O interrogatório prosseguia no quarto iluminado por uma lâmpada fluorescente.
- Tão felizes fomos, Senhor Engenheiro!
- D. Laura, eu…
- Felizes, sim senhor. Dava tudo para o ter de novo aqui. Aqui mesmo, na própria da cadeira onde o Senhor Arquitecto se encontra sentado, ai tão bem que ele ficava sentadinho nessa cadeirinha o pobrezinho, agora todo mortinho que nem posso levar à ideia os bichos a comerem-lhe o bigode, tanto que ele prezava o bigodinho, coitadinho. Lembro-me de quando ele a comprou, a cadeirinha, como se fosse ontem. A empregada da loja a fazer-lhe olhinhos, a dengosa, mulheres sem vergonha é o que são todas elas, e ele muito direito – era um homem com uma boa espinha – a pensar (eu sempre lia os pensamentos dele): “não há duas sem três”!

domingo, 16 de março de 2008

Protegido pelo vidro escurecido, acompanhava sem ser visto o interrogatório de Laura das Dores. Observei-lhe os tiques no queixo enquanto falava e o nervoso que transparecia na inconstância do olhar. O seu discurso parecia querer ser mais inocente e vulgar do que eu lhe estava a adivinhar na mente, apesar disso parecia acreditar fidedignamente no que dizia.
Enquanto psiquiatra, pronunciar-me-ia sobre se a D. Laura deveria ou não ser considerada imputável pela morte de António Silva, o falecido marido, em circunstâncias bastante bizarras e eu não me consigo decidir. Sei que não me devo deixar levar pelo instinto e procurar factos sólidos que sustentem a minha posição, mas esta tipa não me parece nada parva.
O inspector da Polícia Judiciária continuava a sua linha de interrogatório que passava, nesta fase, por deixá-la falar. Mais tarde viriam as acusações e depois de ela se enervar, com sorte, talvez cometesse alguma imprudência, deixasse escapar um qualquer pormenor. Era a metodologia do costume, mas ela já tinha conseguido convencer o agente da sua inocência, por trás daquela máscara de esposa dedicada e dona de casa exemplar na sua conduta. A mim ninguém me tirava que ela tinha varrido o marido do mapa, junto com o cão e as três presumiveis amantes, todas desaparecidas ao longo dos anos.
Por um instante deixei de olhar através do vidro, para pousar o olhar no meu próprio reflexo. O que estava eu aqui a fazer? Não estaria a projectar os meus próprios demónios numa mulher inofensiva? Ao tempo que andava a prometer-me fechar o consultório e tirar umas férias prolongadas, mas metia-se sempre uma coisa e depois outra...
Agora este caso. Não, não me consigo manter objectivo neste caso. Apre!

sábado, 15 de março de 2008

- Então pretende prestar declarações? Tem a certeza?
- Sim, Sr. Dr., vou-lhe contar toda a verdade.
- Então, conte lá tudo o que se relaciona com a morte do Sr. Silva…
- Pois, Sr. Dr., vou-lhe contar tudo desde o princípio: eu casei há quase 20 anos… foi muito bonito, um casamento por amor, o Chico era o melhor mecânico da freguesia, tínhamos uma casa muito jeitosa…
- D. Laura, vamos lá a ver, o princípio do seu casamento não me parece muito relevante para o crime em questão…
- Pelo contrário, Sr. Dr., foi quando tudo começou, foi na altura do meu casamento. Como eu ia a dizer, tínhamos uma casa muito jeitosa, e eu nem tinha de trabalhar fora, e foi aí que começaram as invejas e as maledicências. Passados uns 6 meses de estarmos casados começaram a dizer que ele andava metido com a Júlia da mercearia. É claro que eu nunca acreditei mas, à cautela, tive uma conversa séria com a Júlia e depois… quer-se dizer, não se pode dizer que a culpa seja minha se ela se mudou sem se despedir de ninguém e nunca mais deu notícias, não acha? Enfim… Tivemos mais uns tempos sem problemas mas voltaram as conversas da vizinhança, desta segunda vez os boatos foram com a Maria, viúva do Aníbal. Fui ter outra conversa privada, séria, de mulher para mulher, falei-lhe mesmo ao coração, mas ela não queria mudar para longe… A coisa demorou mais uns tempos para se resolver, primeiro houve uns miúdos que lhe partiram os vidros das janelas, por acaso até lhe digo que os coriscos nunca foram apanhados, depois o cão dela que deve de ter comido qualquer coisa estragada e acabou por se finar, coitadinho, com algum sofrimento até…
- Mas a senhora está a dizer-me que obrigou essas senhoras a mudarem de casa? Que até matou um cão?
- Desculpe Sr. Dr., que eu não disse nada disso! Se vai fazer leituras erradas das minhas conversas ficamos já por aqui e não o ajudo a esclarecer a morte do homem!

sexta-feira, 14 de março de 2008

- Queres que mude de canal? – Perguntou o marido, vendo que ela se mantinha em silêncio.
- Faz como quiseres. Acabei por dormir, perdi o fio à meada, vou para a cama.

Afastou a manta e esfregou o rosto, tentando arranjar coragem para o trajecto até ao quarto. Era uma pena que o sono se impusesse tão categoricamente. O início do filme parecia bastante interessante. Identificara-se desde os primeiros minutos com aquela Luísa desaparecida, uma mulher perdida, heroína frágil fora do seu tempo, atraída pelas sendas subterrâneas da existência. Teria sido engraçado seguir de perto as pistas que os amigos juntavam e a forma como iam fazendo crescer aquela protagonista ausente. Lembrou-se, por momentos, das histórias de Enid Blyton e de como a emoção do mistério a acompanhara durante toda a infância. Tinha chegado a ver, já muito sonolenta, o desaparecimento daquele homem sem nome, que podava os hibiscos, participado à polícia pela mulher num telefonema muito caricato. Lamentava imenso não ter conseguido manter-se acordada. Havia de tentar apanhá-lo noutro canal, queria muito ver este filme até ao fim, descobrir de que vitória fugiria aquela mulher que sorria e olhava com uma delicadeza estóica, e ouvia sinos de vento para tentar pôr alguma ordem nas coisas.

- Chegaste a perceber se o homem desaparecido ia ter com ela?
- Com ela quem? Ah, com a da carta? Não, não vi, pus-me a ler o jornal e a fazer as palavras cruzadas.

Deram um beijo distraído. Ela encaminhou-se para o quarto, despiu-se às escuras e enfiou-se depressa debaixo da roupa. Entretanto lembrou-se, quando estava já prestes a adormecer, que não activara o despertador. Ligou o candeeiro e pegou no relógio com um gesto mecânico. Foi quando reparou numa caixa, bem no centro da mesinha de cabeceira, que nunca antes vira em casa.

quarta-feira, 12 de março de 2008


O autocarro esgueirou-se bamboleante pelo trôpego caminho .

“Quando os autocarros se vão, só resta um cheiro a pneus e gasolina, uma nuvem de fumo e solidão. Foi também para isso que vim. Para me despedir por uma última vez dum autocarro. Quando era pequena gostava de ver os autocarros a partir. Ficava a olhar para aquele corpo de paquiderme a encolher até parecer uma formiga e dizia-lhe adeus até se sumir na próxima curva.
Agora quero ver a vida deixar-me e sumir-se na curva da morte. Sinto um nó na garganta, uma angústia indizível e uma voz surda que me grita: apanha-a, apanha-a. É tarde de mais, mas não lamento. Sei exactamente o que estou a fazer aqui.”



- Policia?… Queria participar o desaparecimento do meu marido…Se desapareceu? Foi o que eu disse, não foi? Que-ro par-ti-ci-par o de-sa…pois pergunte mas não faça perguntas estúpidas…quando desapareceu não sei mas não veio jantar…como não é razão para chamar a policia? O senhor nem me deixa falar…ele já não vem jantar há três dias …nem jantar, nem almoçar, nem podar os hibiscos…pobres hibiscos que estão a ficar todos esgrouviados…há quanto tempo já lhe andava a pedir para me tratar dos hibiscos…



Luísa olhou em volta. Estava tudo exactamente como se lembrava. Há mais de vinte anos não punha ali os pés. Provavelmente mais ninguém pusera ali os pés. Só o velho marco geodésico estava mais velho, atormentado pelas intempéries. Havia ali uma encruzilhada perfeita. Ela plantou-se ao centro, pousou a caixa no chão poeirento. Fechou os olhos. Esteve assim uns minutos. Talvez rezasse.

“ Já não rezo há muitos anos, não como me ensinaram na catequese. Fico assim a não pensar e não pensando inclino-me respeitosamente perante o mistério da criação.”

Levou as mãos à parte de trás do pescoço e quando as devolveu à frente, trazia um fiozinho de ouro que segurava uma medalha minúscula. Nossa Senhora da Paz Lembrança da primeira comunhão que colocou também no chão. À sua volta, nos campos que ladeavam os quatro caminhos, pernilongas plantas infestantes agitavam-se em espasmos, excêntrica dança do ventre que o vento se comprazia em acompanhar com uma triste melodia de dois desajeitados tons.
Depois tirou os óculos. E quis repetir uma última vez um gesto maquinal que praticava há anos.. Bafejou as lentes e limpou-as com a ponta do camiseiro. A seguir esticou os braços com os óculos nas pontas dos dedos para averiguar da eficácia da limpeza. E foi então que, através das lentes graduadas até à exaustão, o viu.

terça-feira, 11 de março de 2008




Entreolhámo-nos, um riso nervoso a estalar o nosso pasmo.
Raul foi o mais rápido: agarrou no casaco, gaguejou umas indicações e saiu. Maria e Pedro agarraram-se aos telemóveis e eu pude, finalmente, contemplar os meus pensamentos, enquanto as luzes da cidade riscavam a noite.
Imaginava Luísa, algures na cidade, a fechar uma mala com um gesto suave mas resoluto. Imaginava as mãos finas de Luísa a cumprirem um ritual mundano, como pentear o cabelo ou endireitar o casaco. Mas mais do que isto tudo, mais do que imaginar gestos, eu desejava-os. Queria que fossem verdade, tal como queria que não chegássemos a tempo. Pedi ao deus que ouve as nossas preces e as encaminha para os nossos sonhos que Luísa partisse, apenas isso, fosse para onde fosse. Creio que já há muitos anos o sabia, desde que lhe lera aquela faceta de heroína estóica na delicadeza do sorriso, na densidade do olhar; e as palavras de Luísa?, sempre tão lúcidas e belas…
Peguei novamente na carta, abanei-a ligeiramente, como se esperasse que mais algum significado escondido se soltasse do traçado das letras. Fala, fala comigo, Luísa, eu prometo compreender. Eu prometo silêncio.
Maria e Pedro, já livres dos telemóveis, avançaram para mim, uma dúvida a marcar-lhes o rosto.
— Que tens, Sara? — perguntou Pedro — Lembraste-te de mais alguma coisa?

segunda-feira, 10 de março de 2008

Não era seu o gosto pela música da moda, pelas roupas da moda, pelos penteados, objectos e palavras da moda. Discreta e sensível, mantivera-se intacta na limpidez de um passado anterior a todas as perdas que tinha sofrido, na lealdade às palavras dos diálogos antigos – diálogos travados com gente morta, mas para sempre vivendo na respiração literária com que oxigenava os dias tristes, passados no escritório da fábrica a administrar os primeiros-socorros da contabilidade exacta às feridas tecnológicas da indústria farmacêutica. Ainda era fiel ao velho porta-chaves de madeira com iniciais gravadas que o avô lhe fizera num dia grande de Novembro (como tinham sido todos os dias da sua infância), com o qual mostrara ao mundo tímido da algibeira do casaco, aos 12 anos, o direito de abrir a porta de casa. Vinte anos depois, a Luísa crescida avançava pelos dias pequeninos do seu presente com a mesma grandeza de sempre esbarrando no espartilho de quatro paredes vazias de emoção.
Reli a carta novamente: “rimas”, “madrigais”, “sinos” e “velas” – palavras de outrora, tentando, com a força dos gigantes do passado, vencer a “renúncia”, a “desistência”. Um curso em Letras e um trabalho em números – a esquizofrenia da vida adulta dilacerando a sensibilidade poética de uma rapariga nascida para ideias longas e algarismos curtos. As “horas erradas” e o “cheiro da fábrica” a justificar uma despedida enigmática… Foi então que vi.
Sempre ali tinha estado, mas só agora, na mecânica dos olhares repetidos, dei pela citação. Ela camuflara-a, eliminando-lhe as aspas. Deixava-nos um rasto subtil para que a encontrássemos? Apagara a autoria com que intenção? Sentei-me com estrondo na cadeira que tinha deixado vaga há poucos minutos apenas e disse, com a gravidade de quem desvenda um mistério.
– Vocês já leram bem as últimas palavras dela? “Estive a um passo de conseguir. Mas perdi, felizmente, perdi.” Não vos diz nada?
Olharam-me em silêncio por momentos. O Raul foi o primeiro a falar.
– Como fomos estúpidos! Alguém sabe onde ela guarda a caixa?

domingo, 9 de março de 2008


“Soa-me a despedida, embora não perceba se de nós, se de si própria...” alvitrou Maria com os olhos fixos na chávena. E assim tirou a patilha da granada que retinha o medo, invadiu a sala e me tirava o ar. Avancei para a janela, o alumínio guinchou, queixoso de gasto e demorei-me a absorver a noite, com o frio de Dezembro a encher-me os pulmões e a expelir o pânico.
Atrás de mim, as vozes nervosas dos rapazes, estabeleciam um plano de acção. O Raul ligaria de manhã cedo para o escritório. “Sara, tu falas com a D. Constância”. Sem me voltar abanei a cabeça. Ela estava muito aflita, não sabia de nada, a Luisa despediu-se com doçura e pediu-lhe que não se preocupasse. Sempre quis poupar a mãe, aquela filha. Ocultava-lhe a angústia crescente, a alma que se perdia aos poucos, naquela coisa física, visceral, que a levava a refugiar-se de um mundo que lhe provocava vómitos e tonturas. Ela bem tentava.
Conhecemo-nos todos de crianças, ali no bairro. Lembro-me de ter lido as “Mulherzinhas” e de a ter visto a ela, heroína frágil, em vestido de época e moral estóica. À medida que crescíamos percebemos ambas que era mesmo isso, que se sentia uma estranha intrusa num tempo que não era o seu.

sábado, 8 de março de 2008

Quando acabei de ler, fez-se silêncio na sala. Quase tão assustador como receber uma carta destas é relê-la, em voz alta, deixar palavras que não são nossas soltas, a ganharem uma vida própria.
Reunirmo-nos não tinha sido difícil, bastou enviar uma mensagem para o grupo de sempre (“se recebeste uma carta da Luísa, trá-la para reunião hoje na minha casa às 21h”). A minha ideia era conseguirmos, todos juntos, descobrir se tínhamos recebido a mesma carta e perceber o que se tinha passado, apesar de não ter a maneira de saber se mais alguém teria recebido a carta. Agora estávamos todos sem saber que sentido tirar do seu conteúdo.
A Maria mexia o chá, o Raul brincava com o telemóvel, e o Pedro tomou a iniciativa: “fartei-me de lhe telefonar e deixar mensagens sem qualquer resposta. Posto isto, acho que ela se fartou, mandou a treta do emprego e da vidinha monótona à vida e foi de férias para o Brasil. Alguém tem uma ideia melhor?”.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Meus amigos

Não há mais nada a fazer. Tentei de tudo: dúvidas dissolvidas em chá verde, papel cravado de rimas fáceis, madrigais, sinos de vento. Cheguei a acender velas e estive tão perto, tão perto de acreditar.
Mas vocês já me vão conhecendo. Nunca me dei com vitórias, não faço parte desse grupo de gente contente. Gosto da renúncia, fecho as persianas quando o dia está ainda a pique, sempre achei que a desistência abre os melhores caminhos. Que nos faz ganhar tempo e memória das coisas. Não interessa a ninguém se sou o corpo que parte ou o corpo que fica. Oscilamos toda a vida entre as duas condições. Mas sinto-me feliz, sabe deus como me sinto feliz, por conseguir, finalmente, deixar de tropeçar nas palavras que esqueço fora do sítio, de ouvir o assobio do carteiro às dez da manhã, de sentir o tempo a anestesiar com o cheiro da fábrica, de ver, pela janela do escritório, enquanto bebo um café apressado, as crianças, ferozes, a chutarem a bola contra as paredes da escola, avisando que já perceberam que viver não está para brincadeiras.
As horas certas passaram por aqui há muito. Juro-vos, não há mais nada a fazer.
Estive a um passo de conseguir. Mas perdi, felizmente, perdi.

Luísa
Dois dias depois, ele foi encontrado no chão, de cabeça para baixo, junto ao piano. Não se sabe se bebeu ou não o copo. Sabe-se apenas que quando foi encontrado estava com uma coleira à volta do pescoço. Dizem as almas mais poéticas (e perversas) que, depois de ter perdido a rapariga, estava com medo de se perder de si próprio.

quarta-feira, 5 de março de 2008



De súbito, algo pareceu mudar nela. Baixou os braços, retraiu o pescoço, dilatou as narinas que fremiam. Captara por segundos uma doce fragrância, mistura de flores e frutos, sereno, terra húmida e infância esquecida. Procurou inspirar os restícios daquele hálito sublime e rodopiou sobre si mesma em busca de mais, de senti-lo em toda a sua plenitude. Entorpecida, arriscou uns passos hesitantes. Sentiu-se sugada e deixou-se ir. Já não se tratava duma mera fuga fictícia eivada de romantismo, Marylin Manson de trazer pela trela, mas dum movimento acossado, perseguido. Sentiu asco pela coleira sebosa que trazia, quase vomitou. Num impulso de raiva deu balanço ao corpo e atirou-a para longe. Os seus passos tornaram-se menos titubeantes, mais rápidos e enérgicos e ela soube que tinha de voltar a correr e fazê-lo dia e noite. Sentiu-se forte e segura, apercebendo-se de que aquela paisagem mergulhada em sombras a aninhava nos seus braços noctívagos. A cidade ali começava a minguar dando lugar a descampados cada vez maiores, a edifícios solitários que se iam perdendo uns dos outros. Assombrada pelo burburinho das árvores e por mil ruídos desconhecidos, soube que se queria sempre inebriada por essa doçura que a afagava.

Ela nunca tinha saído da grande cidade.
Filha, neta e bisneta das suas ruas, dos cafés e esplanadas, do tráfego ensurdecedor à hora de ponta, devia porém as suas origens a um casal de camponeses migrantes em busca de melhor vida.
Mas o campo era algo abstracto que ela não quis nunca conhecer. Calculou naquele instante que era o campo aquela débil aragem protectora, estranhamente familiar. E à medida que o dia foi emergindo dum horizonte não ornado de agulhas como o que conhecia, mas rematado pelas formas sinuosas e gentis de montes e vales, pareceu-lhe ser parte integrante da paisagem como se tivesse ali vivido toda a vida. Do seu lado esquerdo aproximava-se um portão velho e antes que se cruzassem segredara a si mesmo a data que o encimava, 1785. Isso não a perturbou sequer. À medida que avançava, a grande cidade ia-se tornando em algo abstracto que ela não quis nunca conhecer.


O ímpeto abrandou. Qualquer coisa o fez estacar. Não apenas a lentidão do elevador que subia a gemer nos cabos. Um pensamento barrava-lhe o caminho. Olhou a coleira nova. Recuou dois passos, três. Voltou a abrir a porta de casa. Dirigiu-se ao piano. Pelo caminho pisou um papel amarrotado, agora sem importância. E lá estava, sobre três teclas. Um copo cheio.

terça-feira, 4 de março de 2008

Quando ele regressou, o odor da ausência dela já se tinha espalhado pela casa. Nem precisou de a chamar. Em cima do piano, uma folha de papel tremeluzia. Reconheceu imediatamente a grafia dela, leu os desenhos das palavras como se desvendasse uma tela. E bastou um momento de nada, menos que um segundo, para sentir a explosão. Mesmo sabendo que haveria de rebentar assim, um dia, não estava preparado. Nunca se está. Não há trela que nos prenda, não há corda que nos capture, meu amor, e a minha mão arde pelo nada, nada, em que está a segurar.
De forças estilhaçadas, tombou mansamente até ao chão, um fardo negro, uma alma inerte. Aí ficou até que o dia deixou de espalhar quadrados de luz pelo soalho.
Antes de sair, foi até ao quarto e agarrou numa nova trela. O gesto rápido, como um voo rasante de morcego, era prenúncio do que não iria mais reprimir.

Do lado da noite, ela pressentiu o bater das asas dele e voltou a estremecer. Ofegante, abriu os braços, ofereceu o pescoço e esperou. Já adivinhava o clangor da trela, já desejava o sacão da coleira, já saboreava o desejo dele. De braços abertos, esperou.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Assim ele a deixasse ir! Assim ele compreendesse a falta que ela sentia de sentir falta, ela conseguisse expressar o vazio que é não ter vazio, a solidão de nunca estar só.
Olhava-o com o olhar ávido e húmido da manhã que vai ser dia, nem tarde nem cedo, apenas dia redondo de sol. Encontrou no rosto dele a inquietação fria de quem pressente a mudança mas resiste a abandonar a caverna por medo da luz. Já estava habituada àquele olhar cego do hábito, agora mais turvo, ainda mais insuportável. Nada diria. Esperaria que ele saísse. Deixar-lhe ia um bilhete: “Meu amor, andarei fugida de ti. Procura-me nos baldios se me quiseres encontrar. Deixo-te a minha infância, prometo-te uma nova idade. Levo a coleira para que lhe sintas o cheiro; para que me sinta gazela. Espero-te onde ainda não nos conhecemos.” Enrolou a coleira na mão, como se fosse uma corda para trepar muros, um chicote para fustigar perigos. E saiu.
O ar fresco da manhã despertou-lhe os sentidos. Algo por dentro da pele, no seu sangue, nos seus ossos, exigia vertigem, velocidade. Reivindicava embriaguez. Desatou a correr, alerta como nunca, orelhas hirtas, pálpebras duras, dentes molhados. Voltava a pertencer à tribo perdida das caçadoras. Tal como elas, independente. Igualmente exposta. Sempre vulnerável. Apertava na mão a coleira para não se esquecer daquela parcela rija do passado. Queria completar o ciclo do amor: deslumbramento, entrega, obediência, rotina, desencanto, revolta, fuga. Agora era o momento da perseguição. À medida que se afastava dos lugares de estimação sentia-se borrar a paisagem citadina com as cores fortes de uma paixão guerreira que outras antes dela tinham sentido, muitas reprimido, quase nenhumas libertado. De vez em quando parava para impregnar um passeio, uma cadeira de esplanada, um banco de jardim, com o aroma forte da coleira. Ansiava pela captura.
No fim do dia ela já tinha chegado ao lado nocturno da cidade. Outras luzes, as mesmas regras. Olhou em volta e estremeceu.

domingo, 2 de março de 2008



Aquele riso ameninado emudeceu-o. Sim, era ele o cativo, daquela pele branca e macia cujo odor o levava ao Nirvana, daqueles olhos grandes, a um tempo meigos, a outro pérfidos. Ele era o que segurava a ponta da trela, a sua existência a isso se resumia. Não sabia dizer o que tinha sido antes, antes de haver trela, antes de haver olhos assim. E não via o que poderia ser sem ser isso.

Ela continuava a deslizar os dedos pelo seu tronco e a rir baixinho. Sabia o poder que detinha ao deixar-se acorrentar. Durante meses tinha-se alimentado assim, dessa relação estranha e intensa, de ser um animal de estimação. Mas tinha alma e consciência, faltava-lhe uma característica fidelidade canina. Era mais gata. E o seu ser tinha entrado no cio.

Não lhe aborrecia a coleira nem estava farta da trela. Simplesmente o que amanhecia nela era uma vontade enorme de sentir saudades dele. De estar só, ficticiamente abandonada. De fechar os olhos e ter dificuldades de recordar o seu perfil nítido, de se escoar na sombra do tempo o mantra aflito no ouvido dela. Antecipava o desespero que se avizinharia nesse momento. Precisava dele. Precisava de estar longe dele. De se encontrar, no meio de uma multidão, acompanhada por nada mais que aquela sensação doce, de saber que há alguém, algures, que nos ama. Como expressar isto sem que, do outro lado, soasse a rejeição? Experimentava então, esse tom infantil.

“Em cima do piano...” e deixou cair a melodia enquanto abria os seus grandes olhos para ele. Haveria de voltar ronronante.

sábado, 1 de março de 2008

Ele perguntou o que ela queria dizer, e ela permaneceu silenciosa, a sorrir e a brincar com a sua trela. Ele insistiu, fez-lhe festinhas nas orelhas, exactamente como ela gostava, fez-lhe renovadas juras de amor e de obediência, mas ela nada respondeu e deixou-se adormecer tranquila nos seus braços, como sempre, como se nada tivesse alterado a rotina que partilhavam.
Na manhã seguinte, quando ela acordou apercebeu-se que ele estava acordado a olhá-la, e antes que ele pudesse dizer alguma coisa, começou a cantar muito devagarinho, enquanto percorria o tronco dele com as pontas dos dedos:
"Em cima do piano,
Está um copo com veneno,
Quem bebeu...
Morreu..."
E desatou a rir com uma alegria infantil que ele não lhe conhecia.