segunda-feira, 17 de março de 2008

عفوا ، الطبيب ، لانني لا اقول شيئا من هذا القبيل. اذا كنت الذهاب الى اساءة تفسير كلماتي ، نضع حدا لهذه المحادثة الحق الآن ، وانني لن تساعدك على ايجاد رجل.


Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik deteve-se a olhar para a mancha negra das palavras sem as ver na unicidade que lhes conferia sentido. Não era a primeira vez que isto lhe acontecia. Tentou disciplinar-se. Tinha apenas 15 dias para terminar o trabalho e ainda lhe faltavam 50 páginas – um empreendimento duro para qualquer tradutor. Voltou ao excerto onde tinha emperrado. António?! Três amantes?! Então o homem não era Chico?! De onde aparecia aquele nome? E não tinha tido apenas duas amantes?! O que lhe teria escapado na leitura?

Regressou a páginas anteriores, relendo-as pela sétima vez, em busca do pormenor incógnito na identidade do morto e da vida sexual que levara. Deteve-se novamente nas linhas que mais demorara a traduzir. Dera com elas na véspera, como quem embate contra um muro de pele quente num deserto de afectos. Sempre sentira uma atracção especial por muros, não sabia porquê; imaginava-os como celas abertas e esconderijos expostos – espaços inevitáveis no sonho de quem quer ser encontrado e aprisionado. O muro de pele quente com que embatera estava coberto por um vestido coleante e deslocava-se com um par de pernas raras enroladas nas notas do tango argentino, oblíquas no modo como se dispunham de encontro às do Silva. Revia de novo o corpo de Maria, insensato e sugestivo, abandonando-se nos braços do amante com quem dançava naquele fim de tarde, fingindo uma indiferença impossível na docilidade com que se deixava arrastar, torcer, lançar em largos passos de tango, de vento, de carne.
Yarrham lutou contra o pensamento divagante que aquela visão lhe causava – era um tradutor profissional, com um trabalho de responsabilidade entre mãos. Prosseguiu:

اذا كانت ستعقد قضائيا المسؤولين عن عملية القتل انطونيو


Mas a dupla identidade do marido de Laura e o espectro da terceira amante faziam-no regressar uma e outra vez àquele tempo diegético do crepúsculo argentino, em que Maria e Silva dançavam numa rua vazia, emparedados nas sombras angulosas de edifícios nus, dirigindo-se, sem o saberem, para as arestas aguçadas do ciúme. Também ele os sentira (desejo e ciúme); também ele o cometera. Pensou o nome. Arrefecido pela palavra retornou à protecção da língua portuguesa e à dureza do seu ofício. Traduziu-a num exercício de descontracção. Crime. Ler uma língua estrangeira era uma segurança contra a sua própria mente, uma fuga dos caminhos que o poderiam fazer regressar ao desespero do passado. Distraía-se com as vidas de papel que transferia para a sua língua materna. Deambulou pelo leque de sinónimos: transgressão, delito, pecado. Não: teria de especificar. Assassínio.

Apeteceu-lhe matar o autor daquela novela. Voltar atrás e chamar ao morto José, João, Eliandro Benquisto, qualquer treta que não variasse com o voltar das páginas. Eliminar a referência à terceira amante. Devorar o original e vomitá-lo mais limpo, mais sujo, mas obra sua. Sua! Pôr o falecido de saltos altos a dançar o tango ao som do hip-hop com uma Maria descalça, bailarina de dança do ventre. Em vez disso, voltou à leitura. Talvez as linhas seguintes trouxessem alguma luz à confusão instalada com a presença daquele par de intrusos:

O interrogatório prosseguia no quarto iluminado por uma lâmpada fluorescente.
- Tão felizes fomos, Senhor Engenheiro!
- D. Laura, eu…
- Felizes, sim senhor. Dava tudo para o ter de novo aqui. Aqui mesmo, na própria da cadeira onde o Senhor Arquitecto se encontra sentado, ai tão bem que ele ficava sentadinho nessa cadeirinha o pobrezinho, agora todo mortinho que nem posso levar à ideia os bichos a comerem-lhe o bigode, tanto que ele prezava o bigodinho, coitadinho. Lembro-me de quando ele a comprou, a cadeirinha, como se fosse ontem. A empregada da loja a fazer-lhe olhinhos, a dengosa, mulheres sem vergonha é o que são todas elas, e ele muito direito – era um homem com uma boa espinha – a pensar (eu sempre lia os pensamentos dele): “não há duas sem três”!

7 comentários:

leonor disse...

Peço desculpa pela minha incapacidade de formatar o árabe como deve ser: da direita para a esquerda. A verdade é que, mesmo seleccionando apenas as frases em árabe, o resto do texto seguia a formatação do princípio. Ou ficava tudo da direita para a esquerda ou tudo da esquerda para a direita. Ainda pensei em mudar a nacionalidade do tradutor, mas dava muito trabalho. Optei por apelar à vossa compreensão.

Vitor Marques disse...

Onde se lê: اذا كانت ستعقد قضائيا المسؤولين عن عملية القتل انطونيو
deveria ler-se: اذا اذا كانت المحكمه ستكون مسؤولة عن اختفاء انطونيو

Até prova em contrário ela é inocente.

أم لا

leonor disse...

Ora aí está uma edição de elevada qualidade, com revisão técnica e tudo. lol

Maria das Mercês disse...

Crime, traduções e as angústias do sentir árabe...
الله يساعدني

Maria das Mercês disse...

Agora a sério, gostei da ideia, gostei da prosa, diverti-me imenso, Leonor! E como adoro policiais...

Vitor Marques disse...

Afinal todos nós estudamos árabe na mesma escola.

Renata Correia Botelho disse...

A história dentro da história. Boa ideia, bom texto, bom desenvolvimento!!! Muito bem! E eu, como a Maria, adoro policiais; estou ansiosa por ver as voltas que isto dará.