quarta-feira, 30 de abril de 2008

PEÇA PARA UM ACTO SÓ


Na esquerda alta, canapé vermelho e almofadas grandes no chão; ao centro alto, mesa de jantar comprida e três cadeiras; na direita alta, porta; na direita baixa, escadote de cinco degraus; na esquerda baixa, porta; centro baixo vazio. Iluminação indirecta que se acenderá de acordo com as movimentações das personagens.

Acto I – Cena I
Jovem de sexo masculino entra pela esquerda baixa e senta-se no escadote.

Jovem (para o público, de forma confidente, mas acre) – Disseram-me para esperar aqui, que não demoravam, que tinham coisas muito importantes para me mostrar… Duvido! É que duvido mesmo! Acham que conseguem demonstrar a… vamos lá a pensar um pouco… a perpetuidade da alma humana ou… esta é boa… a teoria da expansão do universo aqui, num ambiente tão burguês e num dia tão prosaico como o de hoje. Aliás…

Jovem é interrompido pela entrada de uma criança do sexo feminino que se lhe dirige de forma resoluta e que fica parada a mirá-lo.

Jovem (incrédulo) – És tu?

terça-feira, 29 de abril de 2008

Continua a chover… há uma semana que chove sem parar.
Tomei decisões: evoluir nas escolhas musicais e trocar de casa, apesar de a obra no apartamento vizinho ter parado. Depois logo vejo o que faça, agora preciso do inesperado.
A minha aranha apareceu morta. Causas naturais, ao que me parece. Senti-me como se tivesse perdido uma filha.
Vou dedicar-me à botânica. Ao estudo das plantas apiáceas. Uma família de plantas onde se encaixam a salsa e a cicuta parece-me interessante. E filosófico.
A cicuta pode vir a ser útil. Nunca se sabe.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

teodora
disse-lhe ele
com ternura e murmurou de novo o nome dela como um sopro


teodora



mata-me
quero ser
teu

e ela negra



premiou-o
com uma esto-
cada


que estopada

domingo, 27 de abril de 2008

Decididamente este homem era diferente. Não se assustava com o facto de ela ter uma viúva-negra e, mais estranho ainda, não a estranhava a ela. Parecia, pelo contrário, desejar a dupla. De predadora pressentia ter passado a potencial presa. Uma impressão desconhecida nasceu-lhe nas pontas dos dedos dos pés.
Contrariamente à sua natureza intrínseca, deu por si a vacilar, acobardou-se, desculpou-se com uma máquina de roupa que precisava de estender e não havia tempo para reuniões de condónimos extemporâneas. Assim que fechou a porta com estrondo na cara de Antão, arrependeu-se. Culpou-se. A culpa, sempre a mesma inexorável culpa que a acometia a cada três passos.

A viúva olhava-a com espanto. Ou pelo menos assim ela julgou. Provavelmente seria o seu próprio espanto reflectido. Objectivamente a aranha não poderia compreender o que se tinha passado nos últimos minutos. Mas compreendia-a a ela. Nem sempre tinha sido assim. Nos primeiros meses de convívio eram estranhas, uma habitando um espaço confinado dentro do espaço confinado da outra. Teodora percebeu que nunca seriam verdadeiramente companheiras enquanto tal fosse a ordem espacial, pelo que se decidiu a pedir ao veterinário que retirasse as glandes venenosas à viúva-negra. Nessa noite, particularmente quente e húmida, teve um estranho sonho, que não conseguia recordar na totalidade. Acordou encharcada de suor e lascívia. A aranha, agora solta pela casa, tinha-se vindo aninhar aos pés da cama.

A partir desse dia a relação de Teodora com os homens havia-se transformado radicalmente. Ela não conseguia deixar de imaginar que as glandes venenosas retiradas à viúva, se tinham impregnado nela própria.
Antão parecia imune ao seu feitiço….e fora o único até agora de quem a aranha não se tinha aproximado. Estranha coincidência pensou. “ Ele é tratador de animais e talvez já tenha sido mordido por uma aranha e conservado algum veneno”. Algo de errado se passava. Desta vez a predilecção pelo homem não estava do lado da aranha, mas dela. Era já a sua segunda longa tarde de meditação, sobre o que fazer, mas nada. O vazio. A sua infalibilidade, como desvantagem nunca lhe permitira desenvolver soluções de recurso. Encontrava-se isolada, perdida, sabendo a premência da tomada de uma decisão. No dia seguinte arremetida de uma sensação de derrota arrumou as suas vestes negras que utilizava durante todo o ano, decidida a sair com destino à casa de família. A aranha força-a nitidamente a essa decisão. Senão, porque choraria? Mas algo contrariaria a sua apressada e sofrida decisão. Antão tinha dedicado a sua última semana a espiá-la, o que já fazia desde que elas se tinham mudado para aquele prédio, mas agora não só com intuito de estudar o comportamento de aracnídeos em ambiente doméstico, mas de deliciar-se também com o corpo dele e da vizinha.

- Olá, bom dia! Com estás?
- Ah…..és tu! Olá, bom dia! Esperava outra pessoa, desculpa. Está tudo bem?
- Sim, obrigado. Vejo-te atarefada com essas caixas. Era só para saber se poderíamos fazer uma reunião extraordinária de condóminos.
- Hã?! Mais ainda? Não sei se posso.

A desculpa tinha sido inventada no último minuto, mas parecia perfeita e o motivo muito forte. A sua simpatia por Antão levá-la-ia a atrasar a sua saída? Tinha de o fazer! Antão nunca teria outra hipótese de estudar um outro animal doméstico de tão perto. Consigo as aranhas morriam passado pouco tempo de as levar para casa. E nunca descobrira porquê. A sua investigação estava adiantada mas precisava de continuidade. Por outro lado, a mulher tinha sido a primeira a expandir e revelar toda a sua lascívia. E ele gostou disso. Não queria perder essa sensação. Estava mesmo determinado a ampliá-la e levá-la por muito tempo. Assim, deu-se o momento de planear e jogar por antecipação…

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Pois …. Teodora era malícia e meditação, introspecção e acção. E depois… depois sentia-se culpada. Esta era a sua emoção recorrente: culpa de tudo, culpa de nada, culpa por ter tentado, culpa por ter desistido. Indecisão e dúvida pautavam-lhe os dias, às vezes dava por si a fazer festas à aranha e a apertar-lhe o corpo em demasia. Parecia que ela era o único ser que realmente a entendia, mais até do que ela a si mesma… pois… na verdade, não se entendia nada de nada. Outra dúvida era se às vezes as ideias que lhe surgiam, nasciam da sua própria cabeça se da outra, daquela aranha negra e voluptuosa…. Imensa…

A solidão faz nascer espuma nos cabelos
a imaginação viaja demais num corpo só.

Aquele flash televisivo através da porta não tinha sido o primeiro, nem seria com certeza o último. Alimentavam-na os corpos da vizinhança à distância de uma porta entreaberta. Triste não é?

Antes do Antão, fora o Antero, antes de Antero, Aníbal (ela sempre tivera um certo fetiche pela letra A). Mas não nos percamos… nem de Teodora, mulher íntima, nem da sua arte de aproximação aos homens. Dúvidas assumidas, aproximava-se sempre daquela mesma maneira: primeira a aranha, seus dedos milenares acordando uma qualquer pele nua, depois ela, subtil, salvadora, sua intranquila timidez ajustada como uma máscara perfeita. Não era uma técnica vulgar, pois claro, e os homens, que na sua maioria sentiam aquele primeiro toque como a realização de uma inalcançável fantasia, fugiam dois segundos depois de abrirem os olhos.

Mas nem todos… nem todos.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um profundo sentimento de culpa invadia-a. Remoía-se com a sua recorrente fuga para o excesso. Sabia que tinha de embargar o interminável matracar que irrompia do apartamento vizinho, mas não podia ter cedido à tentação. Apenas conseguiu vergar esta ideia quando se desvelou na corrente do rio da memória tudo o que havia sentido naquele primeiro encontro: “Sou Antão Barreto, o novo vizinho, biólogo de formação e tratador de animais do jardim zoológico de profissão.”

O leve mordiscar na orelha fez com que ele se contorcesse um pouco, o delicado deslizar face abaixo acentuou-lhe o movimento, a breve carícia nos lábios arrepiou-o, a suave pressão no queixo fez-lhe suspirar, o sublime toque bem no meio do peito desabrochou-lhe o arfar, o húmido galgar sobre um dos mamilos levantou-lhe todos os pêlos do corpo, a rápida chegada ao umbigo despertou-o do já inquieto sono.

Não foram mais de dois os segundos em que ficaram, de olhos bem abertos, a se contemplar. O coração precipitou-se em arrítmicas pulsações, todos os outros músculos enrijeceram até que os seus pulmões fizeram brotar um pavoroso grito. O prédio inteiro apeou-se da cama e mesmo a viúva-negra, que observava a partir do umbigo, foi tomada pelo susto.

A porta escancarada do apartamento deixava ver Teodora languidamente estendida na sua chaise longue, com as vergonhas cobertas por folhas – qual Eva a se preparar para regressar ao Paraíso – e os pés acolchoados por umas crocs. Saboreava uma tosta intercalada com fiambre de peru, ouvia See You Naked e não havia pregado olho a noite inteira, só para ver o vizinho correr nu porta fora, enquanto gritava como o mais fervoroso Ateu quando se apercebe que acabou de beijar Deus. Ficou triste. Afinal foi pouco mais do que um flash aquela passagem pelo ecrã em que a sua porta se transformara e agora tinha de ir recolher a sua arranha de estimação, a quem as glandes venenosas haviam sido removidas.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Bem, praticamente, pois falta a parte do enfrascar-me em conhaque, que neste caso não seria para amaciar as carnes, mas para embaciar o espírito. Isto apesar de eu ser mais uma rapariga do tipo vodka tonic, o que supostamente não se coaduna com vocações canónicas… tal como as roupas coloridas e o acordar tarde.
Mas preciso de viver esta clausura, hoje, agora, e responder aos fios de chuva com correntes de pensamentos.
Sentada no sofá, caneca de café em punho, bloco de notas e lápis mesmo à minha beira, deixo correr as ideias. Inevitavelmente, reminiscências da minha infância encadeiam-se nas recordações mais recentes, trazendo à flor da pele as decisões mais sofridas, as desilusões mais sentidas. E questiono-me, seriamente, se alguma vez…
Poc, poc, zzzummmm, poc, poc! Mas quem é que consegue pensar com este chinfrim? Não fora este batuque aqui ao lado e aposto que conseguiria retirar algum nexo deste turbilhão. Bolas!
Com os Led Zeppelin no máximo e a voz do Robert Plant a abafar a rudeza das obras, volto ao sofá, pronta para mais uma fiada de meditação. Então aqui vai.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Acordei, abri o estore e vi que estava a chover.
Primeiro pensei que não havia maneira de chegar a Primavera, logo a seguir refutei-me ao lembrar que na Primavera e no Verão também chove. Portanto, o meu problema não é de uma estação (mais ou menos prolongada), é de todo o ano. Chove todo o ano e faz sol todo o ano. Só varia um bocadinho a intensidade com que as duas coisas acontecem.
Perante esta contrariedade - e mesmo sem que conseguisse encontrar uma relação causa-efeito perfeita entre a chuva e as minhas opções de vida -, decidi não sair de casa, desligar o telefone, restringir aos meus movimentos ao mínimo, ficar a olhar a chuva a cair e planificar os próximos passos a dar.
Chateou-me um bocado o barulho de uma obra que está a acontecer noutro apartamento. A desvantagem de viver em prédio é que a pessoa não pode fingir que está num Convento de Carmelitas. Não que eu ache que a vida religiosa fosse uma boa alternativa para mim, especialmente porque gosto de vestir roupa de cor e custa-me a acordar cedo.
Sinto-me como um peru em véspera de Natal.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

sílvio silvou ainda mais do que o costume. acontecia-lhe isso quando era espezinhado por qualquer preocupação, respirava duma forma perturbante, muito parecida ao resfolegar duma locomotiva. então o que fazia esta mulher. como ousava perturbar a ordem com que displicentemente içara até aos bíceps as mangas da sua camisa. que atrevimento. enquanto se afundava nessas elucubrações, o monge não se apercebeu de algo que se urdia longe do seu alcance. um dos autores da história, um tal não sei que roberto entretinha-se a manobrar os acontecimentos de forma totalmente irresponsável.
sílvio procurou olhar a mulher nos olhos, um olhar de reprovação bem entendido, não o conseguindo por aquela estar demasiadamente concentrada na tarefa de arrebanhar um ímpio para a sua causa. as mangas adquiriam assim uma ordem irrepreensível ás mãos firmes e metódicas da secção feminina do casal oliveira. mas quando finalmente os seus olhos encontraram os dela, sentiu os seus braços levantarem-se como se estivessem a proteger do sol o seu rosto, e este a voltar-se na direcção oposta ou seja longe daquele olhar que irradiava doçura. então era aquilo a doçura duma fémea. sílvio nunca a tinha sentido. era a primeira vez. as mulheres tinham-lhe sido sempre impostas desde a avó que o criara, até á mulher com quem a mãe o quis casar e com quem na realidade casou e isso fizera com que tentasse alhear-se do mundo. no convento só havia homens. e mais tarde no regresso á vida leiga passou a tratar as mulheres como os homens de saias, com quem estava habituado a lidar durante o período de recolhimento. chamava-lhes irmãzinhas e elas habitualmente premiavam-no com um olhar de estranheza. Sentiu-se portanto incomodado por aquele foco intenso e simultaneamente suave. Naquele momento procurou corresponder e deve ter sido bem sucedido porque a mulher continuou a fitá-lo e agora era mais do que um olhar doce que recebia. Ah aquele gajo, o roberto era mesmo um merdas. Não desviavam os olhos um do outro e nem reparavam que a secção masculina do casal oliveira também não desviava os olhos deles. Muito menos se aperceberam de que os seus rostos se tinham aproximado tanto que podiam ver nítidamente a profundidade dos poros um do outro e que esses poros vertiam um liquido rosa bastante espesso que se veio a confirmar mais tarde ser sorvete de morango. Só acordaram do torpor em que se encontravam quando os seus lábios se juntaram e as suas línguas se enroscaram furiosamente uma na outra e isso porque a mulher sentiu o paladar de alcaparra, ingrediente que banira completamente da sua cozinha devido unicamente á rudeza da palavra. Aí recuou. As suas bocas separaram-se ruidosamente. O homem do casal oliveira aproveitou a deixa para gritar eureka eureka. Como era um indivíduo extremamente educado não ousara perturbar o enlevo da sua mulher e de sílvio mas agora que tinham acabado sentia-se á vontade para o fazer já sei porque é que as nossas coisa não estavam nos seus lugares. Mas eles não o ouviram. Sílvio tinha cuspido o resto de alcaparra que ocupara a coroa meio cariada dum molar e esse gesto de boa vontade caíra fundo no coração da fémea oliveira. saíram de mão dada de novo de olhos cravados um no outro de modo que estou em crer que se tenham estampado os dois contra a porta fechada do elevador. Mas isso já não nos diz respeito. Posso apenas mencionar o que aconteceu ás restantes personagens desta história – o macho oliveira ainda lá está a tecer a sexagésima quinta teoria sobre o dinamismo inesperado dos seus pertences e o autor deste belíssimo texto, o tal Roberto desinteressou-se completamente dele e procura agora resolver um problema no teclado do computador , cujo shift está a funcionar muito mal, resultando daí algumas irregularidades na escrita.
Silvio, que desde o momento em que pisara a primeira tijoleira, logo à entrada daquele quadrado perfeito, estava completamente constrangido, ficou ali, de antepara a Julianne, cujo contacto do corpo frágil lhe causava profunda estranheza e desconforto. Sabendo-se responsável por aquele cataclismo na natureza morta que era o quadro do casal, remoeu entre dentes a alhada em que se via metido. A vizinha tomava aquela reza como uma expressiva, apesar de não perceptível, demonstração de solidariedade para com a devassa de que tinham sido vítimas. Silvio era homem de incontáveis defeitos, mas o cinismo não se enumerava entre eles, pelo que se absteve de comentar alto o que quer que fosse relativamente ao “patife” que entrara no apartamento.
Guilherme Oliveira, o vizinho, a quem a mulher chamava carinhosamente “Guilloume”, como se assim o conseguisse elevar com ela a outro nível da estratosfera, ia compondo o ramalhete, com a velocidade que conseguia imprimir, ao acto de devolver todos os objectos ao seu intemporal e perfeito lugar. Quando a sala retomou o seu aspecto original, Julianne conseguiu finalmente acalmar-se, sentou-se na beira da senhorinha, um cadeirão forrado de tecido florido que parecia ter sido reduzido para 2/3 da sua correcta dimensão. Esta calmia foi de apenas um instante, que durou até ela constatar, com horror, que quem a tinha consolado era senão o seu arqui rival vizinho. Silvio era a personificação do caos, de tudo o que podia correr mal na polidez de um indivíduo. Julianne duvidava mesmo que alguém que demonstrava tantas incapacidades de interacção social se pudesse classificar de vizinho. Para ela, ele era um selvagem. E a fantasia de Julianne era imaginar-se, e ao seu “Guilloume”, personagens do Admirável Mundo Novo. Havia que começar por purgar os elementos disfuncionais da sociedade e, para isso, qualquer comunidade era um bom ponto de partida. Julianne decidiu naquele momento tomar a seu cargo a domesticação de Sílvio. Através desse acto, toda a vizinhança evoluiria. Dobrou com precisão 3 vezes cada manga de camisa, como que a arregaçá-las e deu início aquela que seria a obra prima da sua vida.

sábado, 19 de abril de 2008

Entrou e reparou pela primeira vez nas duas figuras com quem já convivia fazia alguns meses. Mas nunca tivera oportunidade de estar sob o mesmo tecto sozinho com elas, de respirar o mesmo ar. A mulher, de tão chorosa nem reparou no defeito aérofugo do vizinho, e deixou-se abraçar levemente como que apoiando-se, evitando um breve desequilíbrio, decorrente do seu estado de choque, já que o marido, a seu pedido, media com uma fita de costura, e lupa de mão (porque era meio cego) os afastamentos entre as peças. Fora esta situação grave de violação do seu ambiente, domesticado, que provocou o caos nesse universo perfeito. Ela era propensa a descontrolos provocados por qualquer engano, erro, desvio das normas, que chegassem até si por qualquer canal de comunicação. O último grande ataque tinha sido provocado pelo purée aux champinhons que era hábito confeccionar e que teve de ser feito com uma espécie diferente de cogumelo. Como ao primeiro domingo de cada mês comem sempre cogumelos passados com manteiga, batata e tempêros vários - o dito purée - esta não se coibiu de os comprar, mas perdeu pelo menos três cabelos com o stresse no caminho loja gourmet-maison Duchant, por ter de recorrer a uns cogumelos desconhecidos que lhe poderiam estragar completamente o primeiro dia da sua semana, e toda esta, na verdade. De origem francesa, tal com a receita, Julianne, muitas vezes chamada de Juliana pelas vizinhas que não a suportam e em volume que garante a audição do trocadilho por parte desta, conservava o seu apelido paterno, como que para marcar a diferença e poder sentir-se superior, imune ao defeitos e imperfeições das pessoas comuns - que segundo ela, estava mais que provado, se transmitiam com a convivência. Esta conduta, com o passar do tempo, levou à obsessão em que vive agora: a busca da perfeição e da tranquilidade, do equilíbrio, da harmonia, sobretudo em seu redor.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Sílvio era, portanto, um monge, um mal entendido com um filho morto como um bafo nos braços. Essa história, por ti revelada John, não tem mais palavras, só silêncio. A mim, ele nunca ma contou... Mas já que estamos numa de o revelar sem lhe pedir autorização, houve uma história que ele me contou que me ficou sempre. A sua dimensão humana, de homem do contra, bruto e bom amigo em simultâneo, estava ali. E talvez algo mais, agora que juntamos as peças… Uma história longuíssima, tendo em conta o tamanho normal das suas frases. Nada de especial. Tudo especialíssimo, ao mesmo tempo.
Os seus vizinhos da frente eram um casal organizadíssimo. Um quadrado exacto. Entravam e saíam todos os dias à mesma hora. Faziam compras de supermercado às segundas, visitavam a mãe de um à terça e a sogra do outro à quarta, viam televisão (sempre na mesma sequência: telejornal, telenovela portuguesa, telenovela brasileira, off) até, exactamente, às 10h35. Se brigavam, brigavam à sexta, entre as onze e a meia-noite. Se discutiam à sexta, sábado, às onze certinhas, quando ele voltava do mercado e ela estava a acabar de desligar, pontualmente, o aspirador, ele trazia uma rosa. Branca. Se fodiam, não se ouvia… devia ser muito baixinho, imaginava Sílvio e, provavelmente, sempre na mesma posição. Missionário. Chegou a ter a teoria de que quando no domingo, se atrasavam cinco minutos na saída para a missa (o que acontecia de quinze em quinze dias) fosse por essa pecaminosa razão, mas nunca teve a certeza...
Até que um dia, quando ia a sair, percebeu que os vizinhos tinham deixado a porta aberta. Não resistiu. Entrou. O apartamento era exactamente como ele tinha imaginado. Um espelho, vivo e morto, de um quadrado exacto. Olhou segundos para aquilo e começou a mudar de posição (alguns centímetros) todos os objectos que conseguiu e saiu a correr. À hora exacta da chegada deles, começou a ouvir os gritos. Não paravam. A mulher chorava como um rio. Até hoje, Sílvio considera ter sido aquela a única boa acção da sua vida. O seu mais belo movimento solar.
O pior … o pior foi que entre os gritos que não paravam, Sílvio não resistiu … foi consolá-los... era a tal delicadeza … e assim… entrou na sua vida um casal muito organizado, portanto.
Toctoctoc… (tentou primeiro)
Dlim dlão…
Era um sábado à noite.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O arrastado bater das botas sobre o cascalho solto anunciava a chegada do bisonte. Ostentando o seu hábito desbotado pela contínua baba que lhe escorria boca fora, o monge Sílvio via prostrado à sua frente o resultado das suas premonições. Foi numa tarde em que um demoníaco calor fazia estalar o pedaço de madeira que dava algum resguardo à sua cela que o eremita anunciou o destino daquele homem. Lera tudo na espuma do café que tomara dias antes com um desconhecido no antro de consumo mais próximo (ele era monge apenas em part time).

O morto fedia como água descoberta choca passados seis meses. Alguém tinha assassinado o bisonte – uma seta impregnada com toxina botulínica perfurara-lhe o baço. Trouxeram-no estatelado sobre uma chapa de zinco e despejaram-no naquele que seria o seu repouso final – a caixa de cartão onde o novo frigorífico do mosteiro viera embalado. A agressão que aquele bedum provocara no tracto nasal de Sílvio fez, todavia, disparar os zumbidos que pautavam a sua respiração, bem como direccionar a sua crónica propensão para o insulto para o padre que ali se deslocara para oficiar o funeral.

O compassado ruído e os trinta e quatro palavrões diferentes articulados em pouco mais de dois minutos deram a impressão errada de Sílvio ao enfezado sacerdote que, temendo um confronto físico, se pôs em fuga. O monge carmelita estava tão-somente a expiar todas as amarguras resultantes da sua não ordenação – a baba desfizera o papel onde escrevera as respostas do exame final do seminário. Deixado sozinho perante o bisonte, Sílvio tomou em mãos uma pá e delegou na força dos seus braços a tarefa pendente.

Pelágio António Prudente, filho de Sílvio, foi a enterrar a 27 de Agosto de 1997.

quarta-feira, 16 de abril de 2008


Porque Sílvio nem sempre tinha sido assim. Aliás, o facto de ter reagido tão mal à actuação do “bisonte” era prova disso: havia resquícios de uma delicadeza passada, agora tão deslocada quanto um impropério num funeral. Era irritante, realmente, o modo como falava para dentro, deixando o ouvinte hesitante entre um arreganhado «como?» e um temeroso silêncio, não fosse Sílvio ter mais uma das suas temperamentais actuações; como era irritante aquela história de meter conversa com as pessoas — por causa disso os amigos já fugiam a tomar café com ele.
Quando eu conheci Sílvio, ele ainda mostrava os sentimentos. Ainda não escondia a sensibilidade. Talvez porque fosse mais novo. Já tinha passado aquela carapaça mole da adolescência e a açucarada euforia dos vintes, mas não tinha ainda sido cilindrado pela calosidade dos quarentas. E nessa altura Sílvio era um homem que tinha coisas para dizer ao mundo, teorias que tanto abrangiam a infinitude do universo como a doçura de um beijo, teorias mais baseadas no instinto do que no conhecimento livresco. Era um fulano interessante.
Eu não estava com ele aquando da actuação do “bisonte”. Mas consigo imaginar a cena.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Mas não se pense que era só o resmungo a sua imagem de marca, tinha outras coisas que incomodavam a maioria das pessoas. Era daquelas pessoas que cultivam propositadamente hábitos irritantes, aparentemente com o objectivo de tentar abanar a restante população com as suas pequenas idiossincrasias, mas só conseguindo tornar-se objecto de má-língua ou de penitências pascais.
E passo a elencar:
- metia conversa com as pessoas que frequentavam o mesmo café, indiscriminadamente, mesmo sem as conhecer, e especialmente quando estavam sossegadas sem incomodarem ninguém;
- se percebia que alguém era mais delicado, usava todos os palavrões que sabia (e alguns que inventava), se estava perante uma pessoa mais bruta, desfazia-se em mesuras;
- comparava todas as pessoas que conhecia a animais (desde girafas a traças);
- gostava de usar roupa velha, cheia de nódoas e, de preferência de tamanho maior que o seu (gabava-se de não compactuar com a indústria da moda e de não contribuir para a melhoria da estética mundial);
- fazia um barulho esquisito a engolir ar (ou seja, sempre respirava)…
Mesmo assim, não se pode dizer que fosse mau amigo.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

"O tipo parecia um touro...ou um bisonte, sim, um bisonte. Um feixe de músculos sem nada que os comandasse. Os músculos parece que agiam sozinhos. Aí diferenciava-se do touro ou do bisonte."
"Qual tipo?"
"Um gajo no centro comercial..."
"Qual gajo?"
"Um gajo, pronto..."
Ele nunca explicava nada. Era sempre assim. Resmungava qualquer coisa. Ninguém percebia nada. Pediam-lhe explicações. Para que é que lhe pediam explicações? Quem pede explicações sobre um resmungo qualquer? Resmungar não é falar. Mas Sílvio era daqueles que fugia à regra. Quando resmungava dizia umas coisas. Não ruminava as palavras como toda a gente, quase as soletrava. Mas depois eram coisas sem nexo porém ditas numa cadência precisa. Quer dizer, parecia um resmungo mas depois não era bem um resmungo. Ou melhor: não parecia um resmungo mas depois era isso, um resmungo.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

em ouriço meu

A ondulação amainara, o vento afrouxara e a chuva inibira-se. Susana podia finalmente dar a conhecer ao mundo Pikus. Mas este ouriço fêmea ainda não se sentia suficientemente seguro de si, para enfrentar o Baile de Debutantes do Clube Micaelense. Após uma longa noite de insónia que fugira ao real, concluiu que tudo quanto precisava era de um pouco de rimel na ponta dos espinhos.

Hau Lourenço da Costa, o espadaúdo birmanês que pachorrentamente ouvira os desejos de Pikus no saguão do seu centro de estética, já só pensava no bem-estar da sua carteira, preparando-se para confiar este cliente aos cuidados do seu mais requisitado operacional, o entrevado congolês Taye Lopes Figueiredo.

“O rimel apenas lhe desvela a ira. Você vai querer muito mais!” – segredou Taye ao ouvido de Pikus, enquanto um dos espinhos lhe perfurava o lábio inferior. Colheu num dedo as gotas de sangue que brotaram com o remover daquele arpão, passando de imediato o dedo ensanguentado pelo braço desnudado de Jezabel, a sua assistente. “Um pouco de silicone na base é tudo quando necessita para desfraldar a luxúria contida nestes glamorosos espinhos.” Pikus ficou a arfar com a sugestão, mas antes que abrisse a boca, Taye prosseguiu. “Vai querer dar azo à gula no baile, por isso é melhor fazer já uma lipoaspiração preventiva. Não se deixe é enganar pela ganância dos outros. Aqui é mais barato!” – confidenciou Taye ao outro ouvido de Pikus, antes de dar a estocada final que selaria o negócio. “Encher-se-á de orgulho e será a inveja de todas as outras!”

Pikus saiu disparado do quarto dos fundos, atropelou Jezabel e deixou Susana calmamente a ler o último número do Times Literary Supplement que encontrara na sala de espera. O terror que se apoderara de Pikus só deu os primeiros sinais de cedência quando vislumbrou o sacerdote Mário Roberto. Mário estava atarefadíssimo a vestir o Corpo Insólito com o novo fato de três peças costurado pelo preguiçoso alfaiate John Silva.

em canto meu

quarta-feira, 2 de abril de 2008

1º round. Toca a sineta.

Chegamos ao fim da primeira ronda de Corpo Insólito. Ou primeiro round se quisermos. Não houve vencedores nem vencidos, apenas um enorme prazer em escrever. Não sabemos se iremos continuar. Pelo menos respeitando este modelo. Creio que da parte da maioria há essa vontade de manter o corpo vivo. Eu sou a favor da eutanásia se se tornar necessário. Iremos decidir o que fazer agora em reunião a agendar. Bora?