quinta-feira, 27 de março de 2008

6 de Junho de 1975

“Verão quente!” – exclamou Benedito enquanto contava os dias desde a última vez que tacteara corpo alheio. À mente só se lhe assomava aquela noite vivida, já fazia três anos, num certo botequim em Midland, Texas. Foi a melhor noite da sua vida.

Horas antes, uma carta de condução falsificada foi tudo quanto precisou para adquirir a sua felicidade. Entrou num Discount Gun Dealer e perdeu-se de amores por uma Magnum 45. “Nikita” – baptizou-a logo Benedito. O inglês mal pronunciado e pior articulado levantou suspeitas ao redneck que o atendera, mas a força de um punhado de dólares convence qualquer um. Mais difícil de engolir foi o facto de Nikita ser nome de homem em russo. “A fag with a gun, that’s going to be fun!” – pensou alto o hillbilly por detrás do balcão.

O dia alvorara como os anjos haviam escrito, a sangue de galinha, nos lençóis nupciais da filha do governador. O lusco-fusco era tudo quanto o córtex cerebral de Benedito precisava, para se iluminar e urdir os amanhãs radiosos que a revolução ergueria nos Açores. Saudades do futuro, dirão alguns, porém o coração de Benedito pulsava por algo de mais concreto. “Luta de classes”, “ditadura do proletariado”, “socialismo” e “Karl Marx”, tudo coisas que a sua Magnum 45 se preparava para abater. Encaminhou-se para o Largo 2 de Março de Almanaque do Agricultor em punho. Por entre um par de anedotas secas como a garganta de quem há horas gritava pela cabeça do governador, Benedito lê que Antero de Quental havia sido um dos primeiros a trazer as ideias socialistas para o país. “Ai o bastardo!” – sobressaltou-se ao saber que um dos mais ilustres filhos da terra era mais vermelho do que o sangue que jorrava do pescoço de uma galinha mal morta. Mudou de rumo e contou os passos até ao Cemitério de S. Joaquim. Descarregou Nikita tantas vezes quanto as necessárias até desfigurar por completo o jazigo de Antero.

Qual deus desconhecido descoberto a contemplar a sua mais recente criação, a besta, apoiada numa bengala, sorvia a sensação única de matar um morto, enquanto expelia pela boca o fumo de um puro cubano. A seu lado, Nikita, aterrada, logo se declarou objectora de consciência e colocou uma hortênsia no cano para marcar a ocasião.

10 comentários:

lefobserver disse...

PLEASE
CAN YOU ENTER IN MY BLOB IN ORDER TO TAKE THE FLAG OF YOUR COUNTRY AND IT IS WRITTEN IN MY MAP OF VISITORS?
THANK YOU
lefobserver.blogspot.com

Maria das Mercês disse...

Bem... isto está cada vez mais surreal. O meu Benedito, que era uma besta (arma de lançamento) virou pessoa. Este é realmente um corpo insólito!
P.S. - estou a ver-me realmente grega!

john silva disse...

Ah, era uma arma? Então é caso para dizer que eu é que sou uma besta... mas daquelas outras, em que se usa a palavra em sentido figurado! Por outro lado, ter um comentário de um grego que se debruça sobre animais estranhos no seu blogue enche-me de orgulho e de uma vontade inusitada de usar hoje peúgas brancas com raquetes de ténis.

Maria Brandão disse...

três anos sem tactear corpo alheio...não é insólito, mas é um bocado mau ;)

Maria das Mercês disse...

John, tu não és nem uma besta nem uma besta... Agora, o facto da tua vinda para este blog coincidir com a adesão dos gregos é que é verdadeiramente suspeito :)
Quanto aos peúgos, prefiro aqueles brancos de desporto, sabes, com a barrinha vermelha? Uma delícia...

john silva disse...

Cá para mim, este grego procurava por "besta" no Google e chegou até aqui. LOL

JNAS disse...

Este John Silva tem resmas de talento. Excelente texto, com ritmo, drama e acção. Quase dava um Western pós-moderno.
JNAS

Su disse...

Que revolução levou o conto nesta prestação! Com comunistas para comer ao pequeno almoço e tudo e tudo... ehehehe
Benvindo John!

Su disse...

Bom, e este comment do grego é uma alucinação! Insólito mesmo...

john silva disse...

"Este John Silva tem resmas de talento."

Paletes, sff. De resto, obrigado pelas considerações :)