sábado, 31 de maio de 2008

Fiquei coberta de pó e desorientada a princípio, como num regresso instantâneo à infância, quando tinha ataques de pânico e falta de ar. Desmaiei. Acordei, arrastei-me mas caí numa pequena depressão no solo. Com pouco mais de 1,5 m de profundidade. Desmaiei de novo. Sonhava então. Raios de sol perscrutaram as minhas pálpebras e acordei, depois de duas horas. Abri primeiro o olho direito sondando o local onde me encontrava.”Raios!, vou sair daqui, fartei-me! E hei-de descobrir o caminho. Que se lixe! Não havia retorno possível. Assim as coisas avançam".

Limpou o musgo e pegou numa papoila que resistia ao vento mas não resistiu àquele vigoroso puxão. “ Vou levar-te para te secar e para te espalmar na última página do caderno de esquiços”. Tira-o do chão e ,ainda meio atarantada, decide-se a encetar o seu projecto….

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Saí a correr, apavorada. Apenas tive tempo de, a uns cem metros da casa, vê-la ruir em minutos.

Perplexa, percebi:
- Aquela casa era eu....

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O arco da porta principal voltou a atravessar-se por cima de mim. O fumo elevava-se da calçada que cobria o chão do vestíbulo, como se uma chuvada se tivesse abatido sobre ela após ter sido fustigada por um sol tórrido. Mas naquele findar de dia nem uma gota de água ali pousara e o frio entrava ossos dentro. Baixei o cigarro da boca até ao luxuriante musgo que me dava pela cintura, para largar um pouco de cinza, e o fumo desapareceu.

“Tens de ir ao oftalmologista!” – agoiro sinistro que me carregou a mente, por um bom par de minutos, e que me feria os tímpanos todas as noites quando ia dormir e escutava, através da mal construída parede, a mulher do vizinho a chagar o marido. Nem aqui, neste recanto perdido entre a Fajã de Baixo e a Fajã de Cima, se Ponta Delgada me deixa em paz.

Uma voz emudecida pelos séculos germinava por entre o musgo da prateleira descaída para o lado esquerdo que havia sido particularmente calejada pelo tempo. “Três reis morreram, três reis morreram…” – consegui discernir ao levantar um velho número do Açoriano Oriental que apodrecia sobre ela. “Suponho que não sejas rei, porque os mortos não falam e isso aqui é muito húmido para ser Alcácer-Quibir.” – retorqui-lhe, para logo ser arrebatada pela dissipação da dúvida que há muito me corroía: “Já não precisas de aspirar a que o teu vizinho te faça bonitas odes na Internet, como em tempos fez à Madame Büttant, podes fazer a ti própria as melhores odes do mundo.”

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Musgo sedoso formava um manto na base onde, imaginei, tivesse havido uma prateleira. Devagar, passei a mão e comecei a imaginar que vidas teriam ali guardado que segredos, que tesouros, que prendas, que mistérios. Puxei do bloco e do lápis e comecei a desenhar. Freneticamente, enchi folhas de traços delicados, perspectivas vigorosas, decorações pujantes.
Acendo um cigarro. Regresso calmamente ao carro.
Olho para trás mais uma vez. E nessa altura reparo no mais importante.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Andei mais alguns metros por entre aquelas memórias perdidas. Senti-me quase conduzida por mão invisível e estaquei sem querer junto a um nicho naparede. Teria sido outrora um armário mas agora nada mais do parecia que um buraco casual. Inclinei-me melhor para ver.

domingo, 25 de maio de 2008


Conduzia o mesmo trajecto de todos os dias. Nesta altura do ano o sol põe-se mesmo à frente, na minha linha de horizonte. Com a visibilidade reduzida, descortinei as pedras da casa por instinto. Abrandei…
Voltei atrás a pé, não vislumbro vivalma, as silvas roçam-me os jeans. Pressinto esta propriedade alheia vaga. Contorno o que resta das quatro paredes, tristes por não susterem telhado, envergonhadas de há muito terem perdido capacidade de abrigo.
As pedras negras parecem querer falar comigo, as cantarias contar quem por elas entrava e saia, da moça que namorava à janela. Entro, consciente de ter licença. No interior só o enorme forno permaneceu vigoroso aos invernos consecutivos.
Cheira-me a casa, a abrigo, a castelo.
Quero revolver a terra com as mãos nuas.
Descubro com simplicidade que sempre pertenci a este lugar.
É uma relação simples e intemporal, que terei agora de firmar no mundo das leis dos homens.

sábado, 24 de maio de 2008

Levava já trinta minutos de modorra, quando ouviu o meter da chave na porta. Chegara por fim. “ Já não era sem tempo! Olá Samuel! Vai escrever a carta que a gente já lá vai ter, para a bisca.” – disse-o propositadamente em tom rebeloso, mas que Godot sabia ser de carinho e ao qual Samuel já nem ligava. «Olha, até já me despi. Agora não há “scones” para ninguém, só depois! Chegaste bem para lá da hora!». Com imediata segurança começa a acariciar a sua pele, depois de se despir também. Quem visse lá de cima sorriria para dois amantes….mas aproximando-se perceberia a mão na pélvis, que acompanha um rosto de sofrimento e ao mesmo tempo de alívio. A ele se dedicara desde o acidente de viação que lhe levara a prima, fazia dois meses. O fisioterapeuta/jogador de cartas era agora um amigo. Chegara a provocar-lhe tremores, arrepios frios e quentes, a única coisa que sentia, agora preenchia-lhe a alma enquanto lhe tratava do corpo. Era a pessoa mais próxima que tinha a certeza de amar. O amor não escolhe formas e aquela era muito peculiar. Estalavam os ossos. As lágrimas corriam, pois Godot estivera uma semana fora para as tais reuniões, desta vez no estrangeiro. São das poucas coisas que o levariam a deixar o seu companheiro sem o tratamento que lhe permite agora andar. Toda a esperança perdida fora resgatada pelas mãos que transportam esta forma de amor três vezes por semana. É o suficiente, e no entanto imprescindível. Muitas vezes, como hoje, nem trocavam palavra, mas olhares, emoção, sensualidade, gestos, que significavam tanto do bom que temos para dar ao outro, sem esperar algo em troca. Amizade Amor Felicidade Cumplicidade. Eles eram neste momento a vida um do outro e não faziam a menor intenção de deixar de o ser, tal como Samuel também o era. Sabiam-no bem e no entanto a dúvida sempre se punha... Chegará alguém? Chegava quase sempre.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Amanhã. Godot virá amanhã. Foi o que Elton pensou a seguir. Porque haveria de se ter apaixonado por ele? Ou melhor, porque raio é que se apaixonou? Não era mais fácil viver antes? Que fazer com aquele tremor de arrepio que lhe arrefecia e aquecia o corpo, duas vezes num só, duas pétalas de desejo no mesmo poema enluado? E com a porra da porra da espera, que fazer?

A raposa é que tinha razão quando disse ao principezinho:
Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração...”

À espera de Godot. À espera que o amor entrasse pela porta adentro, agarrado à chuva, voando cádmio pela poltrona que fazia cucu, cucu, como um beijo. Elton João decidiu-se. Esperá-lo-ia na cama. Até lá, sonharia apenas com os seus corpos nus vistos de cima no espelho gigante do céu.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Godot abanava incessantemente o leque com a cara de Samuel bordada a ponto de cruz e Elton João aproveitava-se, esticando o pescoço para que a sua face fosse igualmente arrefecida. “Queres levar um estalo?” – questionou-lhe Godot com uma voz áspera. Elton ruborizou, esticou ainda mais o pescoço, quase colando o rosto ao do seu companheiro de viagem, e respondeu: “Quero! E depois dou-te a outra face!”

Com as botas enfiadas na cabeça e sentados com as pernas mergulhadas na banheira, lamentavam-se da pontaria que um pombo tivera horas antes. “Maldito táxi descapotável. E o pombo também não podia ter acertado só no teu chapéu?” – rabujava Godot, antes do cenário inspirar Elton, para dar a provar ao viúvo da própria prima mais um requentado episódio da sua vida:

“O vasto campo da Flandres iluminado pelo plúmbeo que encobria toda a abóbada celeste, as pernas afundadas na lama da trincheira, os pulmões invadidos pelo cloro que a máscara não detinha, a Lee-Enfield encravada, o estômago às voltas com uma qualquer mistela que tentava enganar a fome… E a pontaria daqueles estilhaços de granada a choverem-me sobre o capacete?”

O silêncio invadiu a casa de banho e o desdém apoderou-se de Godot que sentenciou: “Uma vida desinteressante vista pela lente de uma imaginação delirante.” O veredicto calou fundo em Elton, cujo choro até irritou o bebé do andar de cima, conhecido por berrar toda a santa noite.

As lágrimas ainda corriam abundantes rosto abaixo quando acordou sobressaltado de mais um sonho, com um toxicodependente a injectar a sua dose diária a partir da ponta do seu nariz. Levou lá a mão, mas falhou o mosquito. Do outro lado das gelosias, a discussão continuava acesa na mercearia do canto e poucos se conformavam com o facto do taxista ter sido multado, por estar a beber uma chávena de Pensal enquanto conduzia. “Será que ainda alguém arrisca vir cá?”

quarta-feira, 21 de maio de 2008


E que outra coisa poderia ter dito? Ali do fundo da sua poltrona amarelo-cádmio não era mais que um espectador; nem isso, a maior parte das vezes, apenas um ser, ocupando espaço e absorvendo oxigénio, mas pouco mais. Era assim que se via, oscilando entre a comiseração e a indignação. Tudo auto-infligido.
Por isso gostava tanto das visitas de Godot. Mesmo que tivesse de esperar. Aliás, costumava dizer de si para consigo (andava, ultimamente, a falar imenso sozinho e em voz alta!), que estava à espera de Godot. À espera de Godot.
Pelos vistos não era o único.
Elton João levantou-se da poltrona para espreitar o dia para lá das gelosias. Os dedos já estavam cansados de tamborilar, o Pensal já estava frio e o relógio de cuco já marcava as 12 horas e dezanove minutos. Olhou para o passeio lá em baixo. Travões a chiar, um táxi parava mesmo em frente à porta do prédio. “Será alguém que chega?”, perguntou-se (em voz alta, novamente…) Elton João.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Godot era primo direito da sua falecida mulher. De quando em quando aparecia para um joguinho de cartas. Volta e meia trazia consigo o amigo Samuel que não sabia jogar às cartas mas escrevia cartas. Pelo menos assim parecia. Ficava a um canto calado, a escrevinhar, a escrevinhar. Godot costumava apontar para ele com o polegar e a dizer em surdina – nunca se cansa, o sacana. Ninguém sabe para quem são aquelas cartas, mas cá para mim só podem ser para uma mulher.
Mas tanto Godot como o amigo, que também tinha um nome estrangeiro, tinham lá estado na noite anterior e nunca apareciam dois dias seguidos. Godot era muito ocupado. Era o que dava a entender porque estava sempre a lastimar-se da falta de tempo para comparecer a umas reuniões. Elton João não sabia se o primo da falecida mulher faltava ou não àquelas reuniões mas tudo leva a crer que sim. Até uma vez telefonaram-lhe lá para casa às tantas da manhã: Estamos á espera de Godot há mais de duas horas. Sabemos que costuma ir a sua casa. Por acaso não sabe dele?

Elton João
disse que não.

domingo, 18 de maio de 2008

A espera desassossegava-o. Ao fim de 20 minutos a bater com as pontas dos dedos, ritmadamente, no braço da cadeira de palhinha, o seu coração disparou ao som estridente da campainha. Levantou-se de um pulo e avançou atabalhoadamente para o intercomunicador. Uma jovial voz masculina anunciou "Correio!". "Ora esta, por onde anda a D. Palmira para não abrir a porta ao carteiro?", o incómodo pela falha da porteira era superado pelo tamanho da decepção que se lhe estampara no rosto.
Arrastou-se de tédio a abrir as gelosias. Maquinalmente, pôs ao lume uma chaleira e numa caneca verde-garrafa duas colheres de cevada Pensal. Bebeu de rosto próximo à janela, grossas gotas de chuva miravam-no do outro lado do vidro, deixando-se escorrer. Lembrou-se de quando esta espera não existia. De quando estar só era o modelo de vida que professava com gosto e altivez. Procurou, no arquivo da memória, qual o momento exacto em que a altivez passara a queixume.
Sentou-se novamente. À espera. O peso da espera a roubar-lhe gradualmente a genica. Amorfo. Pronunciou as sílabas que o papel de parede lhe devolveu estranhas. É da hora, 11 horas e quarenta e dois minutos. "Chegará alguém?".

sábado, 17 de maio de 2008



Ele estava sozinho. Farto de estar sozinho. Todo o espaço que ocupava era bidimensional e parecia não ter alma. Apenas agora lhe saíra a palavra correcta da boca, ao murmurá-la isolada no meio daquela cozinha húmida, de ar não renovado. Não abrira ainda as gelosias. Esperava alguém, a qualquer instante, para preencher o seu vazio e se sentar a seu lado, na poltrona amarelo cádmio, que reservava sempre para outrem. De manhã, levantara-se mais cedo para se por mais "bonito". Com gestos duros, dos músculos entorpecidos e desabituados a tal ginástica, espalhara um creme qualquer, que tornara a pele mais lustrosa e corada. Não tanto pelo creme mas pelos movimentos, que activaram os vasos sanguíneos. De qualquer modo o resultado agradou-lhe. Com mais cor e mais genica, sorria no único momento do dia em que via a sua cara. O cabelo há muito tempo que caíra. Mas não o preocupa. Preocupa-o sim aquela espera desassossegada, a incerteza. “Chegará alguém?” Hirto, permanece a olhar para o relógio de cuco, ainda de mecanismo afinadíssimo (o que já não se pode dizer do cuco que da ultima vez que saíra já não voltara a entrar e permanecia intrépido de goela muda e aberta), onde se vislumbram as onze horas e sete minutos. “Chegará alguém?”.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

“Life’s a bitch, and I’ve got no talent to be a pimp!” – às vezes penso em estrangeiro, não sei bem porquê, mas devo andar a ver muita televisão. Uma, duas, três, quatro… De que serve a possibilidade de escolha quando nenhuma me compreende? Ou serei eu que não me consigo fazer compreender?

O forno está quente, muito quente – tenho um pequeno inferno aqui na minha casa do Nordeste. Lanço-lhe mais um pouco de lenha e a parede chamuscada torna-se branca com o calor – está mesmo no ponto. Não sei o que me deu hoje, mas parece que acordei com Deus no corpo. Assusta-me todo este poder, desconheço de onde veio este talento, mas não posso fraquejar. Jaz nas minhas próprias mãos o destino dos meus problemas – do pó vieste, em pó te tornarei! É desta!

O veludo acetinado acolchoa-me o corpo pela última vez. É tempo para a despedida. “Minha cara cadeira, tu foste durante 13 anos o reflexo – apenas o reflexo. Olhando-te, a realidade escapava-me!”

A madeira estalava e o fumo já ia alto. Passei um pouco de restaurador Olex pelo cabelo e abri a porta de outro quarto. Pelo seu corpo elegante deslizavam os últimos raios de um alaranjado pôr-do-sol. O seu bico desnudado brilhava intensamente. Uma tira de couro cobria o local sagrado onde coloco os dedos. Divinal estava ali aquela caneta.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Porque naquele momento percebi que já não podia voltar atrás.
A volúpia das suas formas tinha sido demasiado para mim. A imagem dos seus pés desnudados continuava a perseguir-me. O seu toque acetinado queimava-me as palmas das mãos.
Já estava tudo consumado, tudo decidido. Sentia-me marcado, um estigma a pesar-me na alma.
Tinha de agir. Sacudir o torpor e agir.
Serena, estava ali exposta.
Levantei-me.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Contemplei-a uma última vez. Pelo canto da boca entreaberta enforcava-se uma gota de saliva. Limpei-lha com uma carícia do polegar. Ela ronronou. Dei comigo a desapertar o cinto. Um calafrio doce percorreu-me. Estremeci. Agarrei-o com a mão esquerda. Parecia rebentar. Serena continuava com a boca entreaberta. O seu arfar quente queimava-me os miolos. Eram duas da tarde. Não lhe voltei a tocar, como se protestasse. Do caule altivo brotou uma rosa branca. O meu rosto contorceu-se num espasmo violento. O quarto inundado por milhares de pétalas. Sentei-me no chão de madeira com veias vermelhas que desmaiavam. E chorei convulsivamente.

domingo, 11 de maio de 2008

...veio-me à ideia não partir. Não a deixar, nem a ela nem às outras três. Fazer tábua rasa, começar de novo, limpo e rejuvenescido, como uma criança, a quem deixam escorrer pela cabeça pura, água da pia baptismal.
Eu, que sempre tive tudo no lugar certo, sinto este desejo pueril de ser incerto. E sem nunca ter estado efectivamente farto, ou ter dado conta disso, da vida que tinha e para a qual me parece, agora, tão rebuscado voltar. Sou um homem novo? Sou finalmente o homem que sempre fui e escondi? Será toda esta comoção causada por ti, que és apenas uma de quatro, que és tu como podia ter sido qualquer outra... Mas teria outra provocado semelhante epifania?
Perdido nestas questões existenciais, não sabia que fazer das coisas práticas, onde arrumar as malas vazias, estavam para ali, desfeando o quarto já quase na penumbra, desvanecendo a sombra dela no soalho de pinho resinoso. Quantas vezes teria sido já afagado, este chão, e porque não posso eu fazer o mesmo comigo, afagar-me de uma vivência que me é estranha, aparecer ao mundo com uma camada nova, fresquinha de envernizada.
Perdoas-me se ficar?

sábado, 10 de maio de 2008

quatro, todas na mesma condição. Ela veio comigo… como poderia ter vindo qualquer outra. Eu sou um bom profissional. Tenho mulher dois filhos uma vida encantadora com tudo o que qualquer homem poderia ambicionar. No entanto, não pude deixar de o fazer. O seu perfil não mo permitiu. Feriu-me de um golpe mortal, que raio de expressão mais infeliz, mas foi isso. Acometeu-se-me uma dor como jamais tinha sentido, os músculos dilataram e o coração disparou. Quero agarrar-te, amar-te, salvar-te, ajudar-te. Queria não ter visto! Queria não ter vindo! Queria não ter saído no apeadeiro!, pensei. A desolação ao redor era para um dos últimos “yuppies”, uma comoção menor, uma lágrima de crocodilo. Mas a sombra das costelas, o vermelho dos lábios, a maceração por todo... arrepio-me. Estava a pensar nela, mas a pensar na minha mulher nos meus filhos. E, em como sair daquela situação. Eu, que em pequeno nunca jogava a avançado, não batia mas pregava rasteiras, tinha sido agora rasteirado sem piedade e não sabia se me levantava. Hoje ainda tenho dúvidas…enfim. Eu, que sempre tive a roupa no lugar certo e a cheirar a malva, estava, então, naquele fim de mundo, que dois dias antes fora apenas o local do meu último trabalho como exactor para O. LEX., a arrumar roupa a uma ….apenas uma de quatro. Já não estou ali mas nunca deixei de arrumar aquela roupa. Ainda hoje a vejo. Estendida na cama …. pela cadeira, um robe de cetim que uma vez vestira e uma vez despira. Não a esqueço. Acabava de a arrumar e quando fechava a última mala …

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Serena… Isto deve ter sido há uns dois anos, não? Aquela sala, aquela cadeira. Tenho dificuldade em contar esta história. Não sei se quero que me compreendam. Não preciso disso. Não sei se quero que conheçam a sua divinal estrutura de ninfa, o gosto salgado dos seus cabelos, a clareza extraordinária do seu modo branco de pensar. Gosto de Rimbaud, eu. Sou um bom profissional, orgulho-me disso.

Escreveria assim, tentando de não vos dizer nada:

A ninguém, os monstros
apenas ao seu silêncio.
A ninguém, o perdão
nem à amargura das rosas
nem ao meu corpo de homem triste.

Eu sou o nojo e a covardia.
E existo.

Mesmo aqui,
ao vosso lado.

Há dois anos, era eu o espectador de sua beleza celeste naquela manhã cálida. Esperei até ter a certeza que ela dormia e abri devagar a sua mala. Preferem que me cale?... Tirei a roupa dobradinha e fui arrumando nas gavetas. Sentia-me feliz. Tínhamos saído do Nordeste às duas da manhã. Ela enjoou um bocado na viagem, precisava de descansar. Calo-me?... Ou pioro um pouco mais … e digo-vos que Serena era uma entre…

quinta-feira, 8 de maio de 2008

As incessantes baforadas de ar condicionado invadiam o quarto, amenizando o calor que brotava dos raios de Sol que trespassavam as cortinas, iluminando-a. Repousava equidistante das quatros paredes que protegiam a volúpia das suas formas. Um veludo acetinado cobria as partes habitualmente afagadas por pele alheia. As costas largas proporcionavam um tacto religioso a quem as percorresse. Aos braços tinha sido emprestado o amor próprio de uma luxuriante devoção. Os pés desnudados eram testemunhas vivas de tudo quando ela suportara ao longo dos seus treze anos. Serena estava ali exposta aquela cadeira.

quarta-feira, 7 de maio de 2008


Cena IV
Jovem e avó estão no centro do palco, ele com ar revoltado, ela humilde; sentado no chão, o Senhor dos Passos tenta retirar o espinho do pé.

Jovem – Oh avó, tu não estás mesmo aqui, percebes, isto não passa de mais uma ilusão da Igreja para nos fazer acreditar que…

Senhor dos Passos – Ah sim? E este espinho, é a fingir? E o sangue no meu pé, é sumo de tomate? Olhem que esta…

Avó (tenta pousar a mão no ombro do jovem, que se afasta) – Fé e amor, fé e amor!

Jovem – E o que mais? Extracto de caviar para a pele, pó de diamante para as unhas, manteiga de karité para o cabelo e um cartão VISA com «plafond» ilimitado. Tenham paciência! (afasta-se, aos gritos) Marília, onde estás?

Senhor dos Passos – Alguém tem aí um canivete? Ou uma faca de fruta? Também serve.

Avó senta-se no sofá, com ar pesarosamente pio. Jovem continua a procurar Marília. Senhor dos Passos permanece no chão, a escarafunchar no pé. Pela esquerda baixa, grupo de adolescentes e criança regressam, cantado e dançando um tema tipo Andrew Lloyd Webber. Colocam-se no centro do palco. O Senhor dos Passos fita-os abismado. O jovem não lhes presta muita atenção, pois está a falar ao telemóvel.

Grupo

“Ele é perigoso!
Ele não é quem diz ser!
Loucos, vocês não percebem,
temos muito a perder,
temos de o esmagar,
como o outro antes dele,
ele tem de morrer!
Pelo bem da nação, ele tem de morrer!
Tem de morrer, tem de morrer!!!”

Entra a tia, de punhal em riste e dirige-se ao jovem.

Tia – Tens de morrer! Sabes demasiado, tens de ser eliminado!

Jovem – Mas está tudo louco? Vim aqui porque me iam dizer e mostrar coisas importantes, nada vi, nada me disseram e agora tenho de morrer porque… ARGH!

Tia crava punhal no peito do jovem, que tomba lentamente para o chão. Grupo de jovens e criança pegam na cruz de Senhor dos Passos, deitam o jovem em cima e saem pela direita alta, cantarolando “Ele teve de morrer!”. Avó e tia seguem-nos. Todas as luzes se apagam, à excepção de foco roxo que incide sobre Senhor dos Passos, ainda sentado no chão a escarafunchar no pé.

Senhor dos Passos – Olhe, espere… ei, passe-me aí esse punhal!

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Entra o Senhor dos Passos de pé coxinho.

Jovem ai que tudo isto não me pode estar a acontecer
SP tenho sede
Jovem que lamuriento…posso saber o que fazes de pé coxinho e ainda por cima com esse peso todo às costas?
Entrou-me um espinho para o pé
Jovem Um espinho? Espera daqui a uma hora ou duas, que já vais ver o que te vai entrar para as mãos e para os pés…um espinho…não perdes por esperar
SPque dizes?
Jovem É isso mesmo que ouviste – cenas dos próximos capítulos. Leio a tv guia é o que é. A Paixão de Soraya, sexta feira às 22h
SP Sabes quem eu sou?
Jovem Claro. Toda a gente sabe e depois?
SP Então sabes que morri para te salvar
Jovem Vai contar essa a outro…eu não sou a minha avó…ela é que ia nessa cantilena. Morreste porque morreste, as pessoas morrem, sabias?
SP Morri mas ressuscitei
Jovem Ressuscitaste, ressuscitaste…e como é que nunca ninguém mais te viu
SP Fui para junto do Pai
Jovem Menino do papá, isso sim
SP Já vi que não acreditas na minha palavra. Vais ver como a tua avó acredita
Jovem A minha avó já morreu
SP Precisamente

Entra a avó também de pé coxinho

Jovem vó, mas tu não tinhas morrido?
SP E morri
Jovem Então faltaste à morte…chateavas-me por faltar às aulas e também tu afinal…
SP O senhor chamou-me
Jovem E vens assim sem mais nem menos? Quando estavas viva eras surda como uma porta. A gente chamava, chamava e tu nada
Jovem A voz do senhor é amor
JC Escuta jovem, amor.
Jovem Tá bem tá…tou a ouvir essa palavra de cinco em cinco minutos – sim, mor; não mor; vamos ao cinema mor; vamos ao café mor“; tens haxe, mor? Vó também te entrou um espinho para o pé?
Avó Não filho, caí nas escadas. Torci o pé e bati com a cabeça. Foi quando encontrei o senhor que me indicou o caminho da salvação
Jovem Devias andar sempre com o GPS na mala, assim não tinhas que falar com desconhecidos
Entra um grupo de adolescentes, 3 raparigas e um rapaz borbulhoso, em animada conversa, distribuem-se displicentemente no canapé, pelas almofadas e no chão, ignorando o jovem.

Jovem (para o público) – Ah! Não me faltava mais nada!! Aturar miúdos cheios de acne… Digam-me vocês, o que terão estas hormonas aos saltos de essencial para me dizer?! (virando-se para o grupo) Hei! Crianças, não são horas de irem à caminha? Desamparem-me a loja que continuo à espera que chegue a Marília… talvez com ela consiga ter uma conversa decente!

(Os miúdos continuam ignorando o jovem, trocando sussurros e risadas entre si)

Jovem – Oi!! Tão surdos ou fazem-se?! Esta agora…

(Irrompe um toque estridente do relógio de menina colocado no pulso no jovem, os miúdos levantam-se, como autómatos, colocam-se em fila de frente para o público)

Adolescente 1 – Neste dia tão prosaico…

Adolescente 2 – …da alma te queríamos falar…

Adolescente 3 – … dos mundos, de Deus…

Adolescente 4 – … dos elfos, das fadas…

Adolescente 2 – … de magos e fariseus…

Adolescente 4 – … da sombra, da luz…

Adolescente 1 – … da morte, do nascer…

Adolescente 3 – … se tu ao menos quisesses saber!…

(Ouve-se novamente o mesmo toque, os adolescentes parecem acordar, riem-se e saem pela esquerda baixa, deixando o jovem só, sentado no escadote tombado, com um foco de luz azul incidindo sobre si)

Jovem (começa por gritar) – Estão loucos, todos loucos, juro-vos…
Desculpem lá, vocês, estarem aqui a assistir a esta cena, a perderem o vosso tempo… eu ainda é como o outro… não tenho verdadeiramente nada de importante para fazer… é que eu… (desolado) eu queria mesmo saber!...
Cena III

As luzes baixam. Deixa de se ver a tia…um brilho rasante ao solo de cor vermelha ilumina agora o andar manco de dois pés não se desvendando o corpo. Um foco branco cega parcialmente a visão do jovem que se encontra no centro do palco, fortemente iluminado, e que compõe a roupa.

Jovem - Uma menina, Um manco…Que me queres dizer?….Queres que eu descubra o quê se nem sequer me deixas ver ou falar-te?

Os pés param e de mesmo ponto do cenário ouve-se o cantar dá letra de uma música cujos acordes são dedilhado numa viola.

Cantante - A musica não a conheces tu. Mas a letra revela-se-te incrivelmente fácil com se desde sempre a tivesses sabido de cor. A tua mãe não a cantou e tu nunca a ouviste no berço. Sim...é Madonna e é o do último ábum, gostas?

Jovem - Mas eu nem gosto de Madonna?!

Cantante - ehhhh....(e continua a cantar)

Jovem - Fazes-me ouvir uma música que eu canto sem conhecer. Mas que não esqueço. E não volto a repetir porque não gosto….Acompanha-me alguém que não conheço e afinamos os dois………Procuro-a mas mesmo manca esta pessoa, que ainda não percebi se mulher ou homem…..passeia-se pela sala escapando as minhas investidas……Ai carago!!! (bate com o joelho no escadote e tomba-o para o centro do palco, de onde tinha saído indo atrás dos pés - percurso livre).

Jovem (grita) - Não entendo, não vejo, não falo, nem percebo o que estou aqui a fazer.
Chamaram-me e põe-se a fazer entrar pessoas que não conheço….porque é que a Marília me chamou aqui…..?!

(Jovem confirma a mensagem antes recebida no telemóvel)

Jovem - Que raio.... Parece que estou à espera do médico mas numa casa ....de alguém que se mudou. A Marília tinha-se mudado……(dirige-se para a porta de cima, abre-a e espreita) …(chama gritando) Marília!!! (Fecha a porta.)

(A mulher cala-se. Ouve-se na direcção da porta de baixo um pequeno grupo distante, que se aproxima .)

Jovem - Ihhh, tamanha ingresia p'ra lá vem! 'Tou feito!

domingo, 4 de maio de 2008

O jovem vira as costas e deita-se na mesa de jantar, a falar com as cadeiras e os gatos, como se a tia não estivesse lá.

Jovem – Odeio-Te. Sem pontos, nem vírgulas, nem qualquer tipo de pausas. E desafio-Te! Vem cá, e diz-me olhos nos olhos que existes, planando omnipresente sobre o mais imperfeito dos mundos… Explica-me porque És Cruel. Explica-me! Queres brincar ao gato e ao rato? Queres???? Com mulheres cinza e púrpura? EU NÃO SOU UMA MARIONETE dos teus caprichos! Sou o dono da minha vida!

Tia – Cucu! Acho que ainda não percebeste bem, jovem…. Levanta a camisa por favor…Não tenhas pressa… mas levanta-a, por favor. (sorri)

O jovem fica algo perplexo, mas obedece e começa a levantar a camisa.

Tia – Já tás a ver o umbigo???? Tás? (o jovem anui com a cabeça) Boa!... Agora passa essa fase por favor… (fala lentamente, como se soletrasse) o teu umbigo não é o centro do mundo…muito menos os teus dramas existenciais… Lamento. Agora vamos avançar para as coisas práticas, please? (Abre a mala)

Começa a ouvir-se piano e uma voz:

em todos os quartos

em todos os cubículos

em todos os pardieiros

uma tragédia e uma comédia

e o mais inesperado dos poemas incompletos

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Um soturno miar irrompe em fundo. A criança de sexo feminino desvela os seus dentes num sorriso angelical e coloca um relógio no pulso de menina do jovem de sexo masculino. De seguida, expõe uma foto sobre cada uma das cadeiras. Os seus longos cabelos acinzentados saem pela direita alta sem dizer uma palavra.

Jovem (boquiaberto) – Por que raio não posso eu andar sem saber da hora e do mês? (para o público) Causa assim tanta impressão a estes fariseus que eu não me submeta a mais esta regra deste mundo burguês?

Levanta-se para ir ver as fotos sobre as cadeiras e a iluminação apaga-se por completo.

Jovem (enraivecido) – Estão a espiar-me, seus malvados! Então, é isso que a vossa inteligência cósmica tem para me oferecer?!?!

CENA II

Ainda ao escuro, entra a tia da criança de sexo feminino pela direita alta.

Tia (com uma voz grave, colocando a mão no ombro do jovem) – A curiosidade matou o gato!

A luz volta, deixando ver a longa capa roxa que cobre o vestido púrpura da tia, bem como um gato cinzento em cima de cada uma das cadeiras, ocultando as fotos.

Jovem (com desdém) – Então, és tu quem me vai demonstrar como funciona o mundo? Fazer ver o bem e o mal, o lógos do universo, a areté do homem? Enfim, qual é a surpresa que trazes hoje para me incendiar a alma, sua filósofa… da espionagem?

A tia coloca sobre a mesa uma pequena gaiola que estava escondida pela sua capa. No seu interior, está um rato com pêlo branco-sujo.

Tia (com uma pose paternal) – Meu caro irmão, o mundo não é para ser ensinado, mas sim aprendido.