Tantas alvoradas já, desde aquele dia amanhecido a sangue de galinha, que me falha a memória, amarelecida pelo gastar dos anos. O meu corpo, esse, contínua impecável, regularmente desmontado e oleado com um desvelo tocante, por um par de mãos progressivamente gasto também, mas sempre com o mesmo carinho. Estas são as mãos que sempre desejei me possuissem e consola-me saber que ficaremos juntos para sempre, mesmo depois das ossadas dele serem pó, naquele imponente jazigo de família.
Cheguei aqui em muito mau estado, com a auto-estima numa lástima. Isto de matar um morto e escavacar uma pedra tumular destabiliza qualquer revólver! De tal forma que lembro apenas uns quantos flashes desse período, o resto escutei aqui, nas tertúlias que preenchem as tardes soalheiras. Consta que andei perdida algum tempo, na clandestinidade. Resgatada, fui etiquetada, a minha proveniência conferida e subi a leilão na Sotheby´s, parte de um espólio do qual não guardo memória.
Do que lembro bem é daquele rosto severo de olhos mansos deleitados sobre mim, as mãos possantes, uma segurando o catálogo e a outra um pingalim, que elevava sempre que outra licitação se ouvia. Soube imediatamente que estavamos destinados e que nunca me faria disparar sobre vivalma. Tem-me aqui desde esse dia, nesta espécie de altar a Antero de Quental, numa caixa de vidro e madeira ricamente adornada. Repouso assim, nesta cama de veludo carmim, qual princesa adormecida numa redoma, ao lado de dois pedaços de granito que reconheço bem. Para uma objectora de consciência, a vida não me podia ter corrido melhor, sobretudo hoje, que soube o que o destino me reservava, quando veio o advogado conferir os termos do novo testamento. Eu e aquele livro quase desfeito, que chegou há umas semanas do alfarrabista do Bairro Alto. Não sei quem seja, nem quem o terá escrito, mas teremos toda a eternidade para pôr a conversa em dia, espero que ele não se desmanche antes disso!
Se se cruzarem um dia destes com o Magno, pobre coitado sem alma nem jeito de piedade, digam-lhe apenas que sou feliz.
FIM
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7 comentários:
Magistral, Susana, agarraste muito bem os nossos desvarios, mantiveste a alma da Nikita e deste-lhe um fim tocante e coeso!
Uau, Susana!!! Que grande, grande final!
Muito, muito bom este final!
Muito obrigada aos meus colegas, isto saiu-me assim de rajada e nem dei tempo de pousar, publiquei logo e já tarde e a más horas... Fico contente que tenham gostado, mais do que começar um conto, isto acusou-me a responsabilidade de o terminar.
Confesso-vos é que me estou a coçar por causa do comentário eliminado... chegue-se à frente quem vem por bem, ou por mal, tanto faz, aqui não censuramos...
O comentário eliminado era meu. Coloquei-o a partir de um computador alheio e só depois é que reparei que havia um outro utilizador com sessão iniciada nesse PC. Por isso, apaguei o comentário e depois reenviei-o a partir do meu computador.
PS – Os melhores textos costumam ser mesmo os que saem de rajada :)
ah! curiosidade satisfeita, gracias John!
Então a todos vemo-nos 6ª, no lugar do costume, lol!
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