sexta-feira, 14 de março de 2008

- Queres que mude de canal? – Perguntou o marido, vendo que ela se mantinha em silêncio.
- Faz como quiseres. Acabei por dormir, perdi o fio à meada, vou para a cama.

Afastou a manta e esfregou o rosto, tentando arranjar coragem para o trajecto até ao quarto. Era uma pena que o sono se impusesse tão categoricamente. O início do filme parecia bastante interessante. Identificara-se desde os primeiros minutos com aquela Luísa desaparecida, uma mulher perdida, heroína frágil fora do seu tempo, atraída pelas sendas subterrâneas da existência. Teria sido engraçado seguir de perto as pistas que os amigos juntavam e a forma como iam fazendo crescer aquela protagonista ausente. Lembrou-se, por momentos, das histórias de Enid Blyton e de como a emoção do mistério a acompanhara durante toda a infância. Tinha chegado a ver, já muito sonolenta, o desaparecimento daquele homem sem nome, que podava os hibiscos, participado à polícia pela mulher num telefonema muito caricato. Lamentava imenso não ter conseguido manter-se acordada. Havia de tentar apanhá-lo noutro canal, queria muito ver este filme até ao fim, descobrir de que vitória fugiria aquela mulher que sorria e olhava com uma delicadeza estóica, e ouvia sinos de vento para tentar pôr alguma ordem nas coisas.

- Chegaste a perceber se o homem desaparecido ia ter com ela?
- Com ela quem? Ah, com a da carta? Não, não vi, pus-me a ler o jornal e a fazer as palavras cruzadas.

Deram um beijo distraído. Ela encaminhou-se para o quarto, despiu-se às escuras e enfiou-se depressa debaixo da roupa. Entretanto lembrou-se, quando estava já prestes a adormecer, que não activara o despertador. Ligou o candeeiro e pegou no relógio com um gesto mecânico. Foi quando reparou numa caixa, bem no centro da mesinha de cabeceira, que nunca antes vira em casa.

5 comentários:

Renata Correia Botelho disse...

Companheiros, creio que foi um fim um pouco bizarro, mas, com a ausência do texto do Nuno (combinada tardiamente entre nós os dois) - que muita falta faz ao meu raciocínio no encadeamento das coisas - esta foi a forma que encontrei de acabar o conto sem acabar...
Ou seja, assim caberá, sempre, um texto do Nuno neste conto.

Mário disse...

Muito engenhoso, Rennie(alivia a acidez, indigestão, azia). Este conto merece que se lhe dedique uma segunda rodada. Mais cerveja para todos!!!

Maria das Mercês disse...

Brilhante, Renata, gostei imenso da prosa e da ideia de isto ser afinal um filme que todos nós imaginámos... E mesmo que fique por aqui, acaba em mistério! Mais uma rodada mesmo!

Iceberg disse...

grande jogada. um twist final que surpreendeu. Gostei.

leonor disse...

Solução genial para um bricabraque incompleto, com vazios e algumas inconsequências. Muito bem o regresso à minha caixinha - obrigada! Gostei da estranheza que ela causa ao transitar de uma esfera de ficção para outra. Mantiveste, até no final, o suspense de todo o conto e conseguiste construir o que já parecia difícil: uma explicação e um remate articulado com os textos anteriores.