terça-feira, 4 de março de 2008

Quando ele regressou, o odor da ausência dela já se tinha espalhado pela casa. Nem precisou de a chamar. Em cima do piano, uma folha de papel tremeluzia. Reconheceu imediatamente a grafia dela, leu os desenhos das palavras como se desvendasse uma tela. E bastou um momento de nada, menos que um segundo, para sentir a explosão. Mesmo sabendo que haveria de rebentar assim, um dia, não estava preparado. Nunca se está. Não há trela que nos prenda, não há corda que nos capture, meu amor, e a minha mão arde pelo nada, nada, em que está a segurar.
De forças estilhaçadas, tombou mansamente até ao chão, um fardo negro, uma alma inerte. Aí ficou até que o dia deixou de espalhar quadrados de luz pelo soalho.
Antes de sair, foi até ao quarto e agarrou numa nova trela. O gesto rápido, como um voo rasante de morcego, era prenúncio do que não iria mais reprimir.

Do lado da noite, ela pressentiu o bater das asas dele e voltou a estremecer. Ofegante, abriu os braços, ofereceu o pescoço e esperou. Já adivinhava o clangor da trela, já desejava o sacão da coleira, já saboreava o desejo dele. De braços abertos, esperou.

11 comentários:

Su disse...

Excelente contributo, Maria! Adorei o singelo odor da ausência. E o rapaz parece mesmo um morcego, a julgar pelas fotos (e é se quisermos ser simpáticos), muito bem visto. O copo de veneno, ainda em cima do piano, Mário?

leonor disse...

Também gostei da mão "a arder pelo nada" e da ligação que fizeste entre o final do meu texto e o bater de asas dele. De facto, um bater de asas em condições faz mesmo estremecer...
Então o rapaz vai sair da caverna. Como será que a vai capturar? Em que terreno se vão reencontrar como desconhecidos? Ou nada disto vai acontecer e, afinal, a prestação do Mário levar-nos-á ao Vaticano para o reencontrarmos como Papa, disfarçado de Anti-Cristo? Rapaz, tu atina! Vê lá o que fazes ou nunca te perdoaremos!!!!

Renata Correia Botelho disse...

ah, grande Maria!!! Muito bom contributo! E cá temos mais um animal em cena - o morcego cai-lhe a matar!!!

rita disse...

apreciei Maria :)
e confesso que a referência ao morcego e à oferta do pescoço me fez pensar em vampiros.
a ver vamos...

Maria das Mercês disse...

Meus colegas, agradeço os elogios e distribuo de volta, somos todos membros deste corpo. Quanto ao morcego, se ela pode ser gata ou gazela, ele pode ser um bicho também - o morcego por causa do aspecto, claro! Mário, tu vê lá, criatura! Eheheh

Vitor Marques disse...

Mas a vida dá muitas voltas e após uma caçada feroz ela está novamente cativa. Ferida, é ele quem a alimenta a papas de leite que ele carinhosamente salpicava com 3 gotas do veneno que já não está em cima do piano. Será que conseguirá resistir até ao fim do conto?

Vitor Marques disse...

As minhas desculpas por esta fotonovela assim pr`o Corin Tellado digital. Aqui termino senão quem vai preso sou eu...

Mário disse...

hmmm

leonor disse...

Acho que o Mário vai aproveitar a ideia, Corin Tellado ou não, e explorar a atmosfera gótica que rodeia os jovens: asas de morcego, dentes de tubarão, revolvam na fervura do meu caldeirão.

Maria das Mercês disse...

Ela está cativa na foto da realidade, neste conto eles são tudo o que quiserem ser! Mário, esperamos tudo de ti!

Su disse...

Eu confesso que acho graça à fotonovela, reveste este conto de uma capa de veracidade fictícia. Diverte-me este exercício de pegar em pessoas reais e projectar-lhes uma existência, mais do que tentar adivinhar-lhes os passos. E adoro a troca de galhardetes postados, é uma animação!