quarta-feira, 5 de março de 2008



De súbito, algo pareceu mudar nela. Baixou os braços, retraiu o pescoço, dilatou as narinas que fremiam. Captara por segundos uma doce fragrância, mistura de flores e frutos, sereno, terra húmida e infância esquecida. Procurou inspirar os restícios daquele hálito sublime e rodopiou sobre si mesma em busca de mais, de senti-lo em toda a sua plenitude. Entorpecida, arriscou uns passos hesitantes. Sentiu-se sugada e deixou-se ir. Já não se tratava duma mera fuga fictícia eivada de romantismo, Marylin Manson de trazer pela trela, mas dum movimento acossado, perseguido. Sentiu asco pela coleira sebosa que trazia, quase vomitou. Num impulso de raiva deu balanço ao corpo e atirou-a para longe. Os seus passos tornaram-se menos titubeantes, mais rápidos e enérgicos e ela soube que tinha de voltar a correr e fazê-lo dia e noite. Sentiu-se forte e segura, apercebendo-se de que aquela paisagem mergulhada em sombras a aninhava nos seus braços noctívagos. A cidade ali começava a minguar dando lugar a descampados cada vez maiores, a edifícios solitários que se iam perdendo uns dos outros. Assombrada pelo burburinho das árvores e por mil ruídos desconhecidos, soube que se queria sempre inebriada por essa doçura que a afagava.

Ela nunca tinha saído da grande cidade.
Filha, neta e bisneta das suas ruas, dos cafés e esplanadas, do tráfego ensurdecedor à hora de ponta, devia porém as suas origens a um casal de camponeses migrantes em busca de melhor vida.
Mas o campo era algo abstracto que ela não quis nunca conhecer. Calculou naquele instante que era o campo aquela débil aragem protectora, estranhamente familiar. E à medida que o dia foi emergindo dum horizonte não ornado de agulhas como o que conhecia, mas rematado pelas formas sinuosas e gentis de montes e vales, pareceu-lhe ser parte integrante da paisagem como se tivesse ali vivido toda a vida. Do seu lado esquerdo aproximava-se um portão velho e antes que se cruzassem segredara a si mesmo a data que o encimava, 1785. Isso não a perturbou sequer. À medida que avançava, a grande cidade ia-se tornando em algo abstracto que ela não quis nunca conhecer.


O ímpeto abrandou. Qualquer coisa o fez estacar. Não apenas a lentidão do elevador que subia a gemer nos cabos. Um pensamento barrava-lhe o caminho. Olhou a coleira nova. Recuou dois passos, três. Voltou a abrir a porta de casa. Dirigiu-se ao piano. Pelo caminho pisou um papel amarrotado, agora sem importância. E lá estava, sobre três teclas. Um copo cheio.

7 comentários:

Maria das Mercês disse...

Mário, gostei imenso do teu texto! Gostei principalmente do facto de teres este outro registo, de nos surpreenderes... Muito bem! Uma boa reviravolta na trama!

Anónimo disse...

Nada de muitas reviravoltas que eu fico com os olhos nos bicos dos pés. E o regresso portentoso do copo, hem, que tal?? As minhas saudosas congratulações democráticas. Gostei muito. Terei que ler a trama de cima para baixo. Também pode ser interessante: uma espécie de genealogia em inversão de marcha sem espelho retrovisor. Vou ler o outro agora. Já.

leonor disse...

Uau! Surpresa total! O versátil Mário muda de registo e convence! Gostei muito, muito. Sugeres um óptimo desfecho, bastante verosímil: ninguém permanece o mesmo depois de uma saída para fora dos limites do conhecido. Ou voltavam como desconhecidos ou não voltavam de todo. Será que o Nuno tem uma terceira hipótese para nos surpreender? Seja como for, os meus parabéns, Mário.

Su disse...

Mário, tiro-te o chapéu. Gostei tanto que até te perdoo o facto de achares que a saída dela (cujas razões procurei consubstanciar no meu texto)foi uma "fuga fictícia eivada de romantismo"... As razões que nos levam a tomar um 1º passo podem, a qualquer momento, derivar para outra coisa qualquer. E esta miúda está a crescer e a descobrir-se. E nós também descobrimos este outro registo teu, surpreendente. Boa! Ah, e o copo ainda lá está, ehehe!

Judite Fernandes disse...

Uau... isto cresce que se farta...
muy muy bién. Aguardo, curiosa e pacificamente, desenvolvimentos e conclusões.
Abraço Judite

Renata Correia Botelho disse...

Boa, Mário! Mesmo, mesmo!

Mário disse...

Cá estou eu refastelado à frente do computador a ver estes comentários elogiosos. Já os li 7456 vezes. Nada mau quando se está com o ego meio combalido. Obrigado a todos.