sexta-feira, 7 de março de 2008

Meus amigos

Não há mais nada a fazer. Tentei de tudo: dúvidas dissolvidas em chá verde, papel cravado de rimas fáceis, madrigais, sinos de vento. Cheguei a acender velas e estive tão perto, tão perto de acreditar.
Mas vocês já me vão conhecendo. Nunca me dei com vitórias, não faço parte desse grupo de gente contente. Gosto da renúncia, fecho as persianas quando o dia está ainda a pique, sempre achei que a desistência abre os melhores caminhos. Que nos faz ganhar tempo e memória das coisas. Não interessa a ninguém se sou o corpo que parte ou o corpo que fica. Oscilamos toda a vida entre as duas condições. Mas sinto-me feliz, sabe deus como me sinto feliz, por conseguir, finalmente, deixar de tropeçar nas palavras que esqueço fora do sítio, de ouvir o assobio do carteiro às dez da manhã, de sentir o tempo a anestesiar com o cheiro da fábrica, de ver, pela janela do escritório, enquanto bebo um café apressado, as crianças, ferozes, a chutarem a bola contra as paredes da escola, avisando que já perceberam que viver não está para brincadeiras.
As horas certas passaram por aqui há muito. Juro-vos, não há mais nada a fazer.
Estive a um passo de conseguir. Mas perdi, felizmente, perdi.

Luísa

5 comentários:

Maria das Mercês disse...

Que texto tão belo, Renata. Enigmático, mas universal no sentimento que transmite. E gosto muito da ideia de ser uma carta. A quem se dirige? Belo começo...

leonor disse...

Há momentos que ficam estragados quando as palavras lhes tocam. Vou deixar este bem fechado num silêncio agradecido.

Iceberg disse...

O sorriso que me acompanhou ao ler uma vez mais o Corpo Insólito é bom sinal. E mais não digo. Leio somente.

Mário disse...

A Rita foi uma digna sucessora da Renata

Mário disse...

Auguro um bom futuro a este conto