terça-feira, 18 de março de 2008


“D. Laura fungou mais um pouco, murmurando «coitadinhos» e «pobrezinhos» com um ar compungido. Do lado de lá do vidro, o psiquiatra tomava notas com ar de sacrifício, apenas observado por si próprio no reflexo do espelho. Na sala, o inspector levantava os olhos para as placas de esferovite amarelado do tecto e pensava se deveria ou não fazer uma acareação. Trazer a vizinhança e confrontá-la com o raio da velha, que não se demovia da posição de viúva chorosa; espertalhona é o que ela era, parecia um muro”…

Aquilo foi demais para Yar-rham Catrapar-rham Al-Pipik. Estacou de tal forma que até enrugou o papel. Muro?

أنّ يحميني قسم من ضرب هم حارّة من الصحراء, من الجدر أنّ يسقط ومن النساء قاتلة

Não, não podia colocar isto no texto. Uma coisa era melhorar o original, limpar as incongruências, enfim, salvar aquele livro de ser uma estopada; outra coisa era começar a debitar texto próprio. Mas comparar aquela mulher a um muro, elevá-la a uma qualidade que não possuía, era demais para Yar-rham!

“Um raspão seco na porta da sala de interrogatório interrompeu as divagações do inspector. Levantou-se, olhando de soslaio para D. Laura, abriu a porta e deu de caras com os tiques nervosos do detective de serviço. O homem gesticulava enquanto lhe estendia um papel:
— Desculpe, mas é que chegou este relatoriozinho, achei que podia ser importante… hum… pode ser que…
— Está bem, homem, deixe cá ver. — os modos bruscos do inspector puseram fim às hesitações do detective, que recuou até embater no outro lado do estreito corredor. — Ó diabo, isto muda tudo de figura!”.

Yar-rham decidiu fazer uma pausa. Ia sair um pouco, beber uma limonada, talvez até passar naquele bar onde a tinha visto pela última vez. A cidade ondulava sob o calor da tarde, mas sempre era melhor do que ficar ali acompanhado por aquele texto.
Quando já estava quase pronto para sair, um raspão seco na porta da rua fê-lo parar. Por baixo da porta surgia a mancha branca de um envelope.

3 comentários:

Maria das Mercês disse...

Caros colegas membros: tive de me estender mais um pouco nos caracteres, isto de contar 2 histórias ao mesmo tempo tem que se lhe diga. Espero que se divirtam! Oxalá...

leonor disse...

Gostei muitíssimo. Alternas muito bem os dois planos narrativos e terminas cada um deles de forma a suscitar a vontade de ler mais. Um papel debaixo da porta do tradutor e um relatório que muda tudo de figura... Mário, cabe-te a ti pôr-nos ao corrente do conteúdo destes documentos. Quanto à extensão, Maria, eu fui mais palavrosa e imagino o Mário a bater recordes. أم لا

Renata Correia Botelho disse...

Muito, muito bom! Óptimo ritmo, Maria!!!!!!