sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Vestiam-se escrupulosamente de preto, de manhã cedo, depois de tomarem o pequeno-almoço na cama. Mas era raro saírem à rua. O mundo exterior tinha muito pouco para lhes contar. Passavam longas horas sentados na mesa da cozinha, ele a dar-lhe de comer aos bocadinhos, ela a mordiscar-lhe o queixo e a lamber-lhe os dedos, numa troca sensual entre predador e presa. Ele prendera-a porque ela o exigira desde o início: para se sentir cativa – ela que até ali gastara a existência de uma forma errante, sem prazer nisso – e para ter, no contacto com a corrente, uma garantia de estar viva. E porque, na verdade, sempre concordara com a ideia de que nos devemos deixar prender por aquilo em que acreditamos. Ele não se opusera. Comprara-lhe, logo no dia a seguir, a mais moderna coleira do mercado.

Quando se deitavam, atava a trela a um dos pés da cama e apagava todas as luzes. Faziam amor com a voracidade de quem luta contra a morte. “Sou eu que estou acorrentado, tu és a minha caverna, meu amor, a casa escura que me abriga dos estragos da luz, e eu só sei viver dentro de ti, na noite cerrada”, dizia ele. Dizia-lhe aquilo sempre, noite após noite. Ela ficava em silêncio, de olhos fechados, a repor a respiração. Depois ele limpava-lhe o suor, dava-lhe de beber e aconchegava-se ao seu corpo já quase quieto. Ela nunca dizia nada. Nunca respondia nada àquela frase estranha e comprida, que ele pronunciava, todas as vezes, com a mesma aflição na voz.

Depois do ritual de sempre, houve uma noite em que ela abriu muito os olhos e disse laconicamente: “Sinto que estou a amanhecer”.

7 comentários:

leonor disse...

O Corpo Insólito tem, neste quarto conto, a promessa de uma grande experiência de escrita: desconcertante, intensa. Belíssima sequência, Renata. Parabéns!

Su disse...

Excelente. Sinto que o início deste conto foi a 4 mãos. O Nuno pouco disse, o suficiente para ser tudo ou nada. A Renata, escrevendo mais, não abre ainda o jogo. Belas palavras as vossas. Ficamos agora mais por dentro desta relação estranha e intensa, mas (e nisto é que considero que a sequência está tão boa), apenas o suficiente para poder continuar ser qualquer outra coisa. Muito, muito bom.

Maria das Mercês disse...

Que mais elogios posso escrever? Depois da fantástica estranheza do texto do Nuno (nosso prof!), a belíssima caracterização - sensual, intensa, vibrante - do texto da Renata. Mal posso aguardar pelo resto!

Mário disse...

ui. terrivelmente prometedor

Judite Fernandes disse...

isto está uma delícia... ehehehe...
continuem ... que por aqui aguarda-se...
abraço Judite

Anónimo disse...

Predador e presa, hey?! Espero que nenhuma feminista ofegante passe por aqui

Iceberg disse...

impressionante a qualidade. Acrescentado aos favoritos.