Protegido pelo vidro escurecido, acompanhava sem ser visto o interrogatório de Laura das Dores. Observei-lhe os tiques no queixo enquanto falava e o nervoso que transparecia na inconstância do olhar. O seu discurso parecia querer ser mais inocente e vulgar do que eu lhe estava a adivinhar na mente, apesar disso parecia acreditar fidedignamente no que dizia.
Enquanto psiquiatra, pronunciar-me-ia sobre se a D. Laura deveria ou não ser considerada imputável pela morte de António Silva, o falecido marido, em circunstâncias bastante bizarras e eu não me consigo decidir. Sei que não me devo deixar levar pelo instinto e procurar factos sólidos que sustentem a minha posição, mas esta tipa não me parece nada parva.
O inspector da Polícia Judiciária continuava a sua linha de interrogatório que passava, nesta fase, por deixá-la falar. Mais tarde viriam as acusações e depois de ela se enervar, com sorte, talvez cometesse alguma imprudência, deixasse escapar um qualquer pormenor. Era a metodologia do costume, mas ela já tinha conseguido convencer o agente da sua inocência, por trás daquela máscara de esposa dedicada e dona de casa exemplar na sua conduta. A mim ninguém me tirava que ela tinha varrido o marido do mapa, junto com o cão e as três presumiveis amantes, todas desaparecidas ao longo dos anos.
Por um instante deixei de olhar através do vidro, para pousar o olhar no meu próprio reflexo. O que estava eu aqui a fazer? Não estaria a projectar os meus próprios demónios numa mulher inofensiva? Ao tempo que andava a prometer-me fechar o consultório e tirar umas férias prolongadas, mas metia-se sempre uma coisa e depois outra...
Agora este caso. Não, não me consigo manter objectivo neste caso. Apre!
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3 comentários:
E agora um psiquiatra... isto está a ficar interessante! Leonor, este "whodunnit" é um desafio e maçãs!
Caríssima Susaníssima: talvez dado o adiantado da hora a que publicaste o teu texto, deixaste-me de olhos trocados. Mas deste umas belíssimas pistas. Apre!
É belíssima (e poderosa, e de grande alcance psicológico) esta imagem que criaste a partir da ideia de alguém que deixa de olhar através do vidro para pousar o olhar no seu próprio reflexo! Grande tirada! Segui esta frase como se estivesse a vê-la num ecrã de cinema.
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