segunda-feira, 3 de março de 2008

Assim ele a deixasse ir! Assim ele compreendesse a falta que ela sentia de sentir falta, ela conseguisse expressar o vazio que é não ter vazio, a solidão de nunca estar só.
Olhava-o com o olhar ávido e húmido da manhã que vai ser dia, nem tarde nem cedo, apenas dia redondo de sol. Encontrou no rosto dele a inquietação fria de quem pressente a mudança mas resiste a abandonar a caverna por medo da luz. Já estava habituada àquele olhar cego do hábito, agora mais turvo, ainda mais insuportável. Nada diria. Esperaria que ele saísse. Deixar-lhe ia um bilhete: “Meu amor, andarei fugida de ti. Procura-me nos baldios se me quiseres encontrar. Deixo-te a minha infância, prometo-te uma nova idade. Levo a coleira para que lhe sintas o cheiro; para que me sinta gazela. Espero-te onde ainda não nos conhecemos.” Enrolou a coleira na mão, como se fosse uma corda para trepar muros, um chicote para fustigar perigos. E saiu.
O ar fresco da manhã despertou-lhe os sentidos. Algo por dentro da pele, no seu sangue, nos seus ossos, exigia vertigem, velocidade. Reivindicava embriaguez. Desatou a correr, alerta como nunca, orelhas hirtas, pálpebras duras, dentes molhados. Voltava a pertencer à tribo perdida das caçadoras. Tal como elas, independente. Igualmente exposta. Sempre vulnerável. Apertava na mão a coleira para não se esquecer daquela parcela rija do passado. Queria completar o ciclo do amor: deslumbramento, entrega, obediência, rotina, desencanto, revolta, fuga. Agora era o momento da perseguição. À medida que se afastava dos lugares de estimação sentia-se borrar a paisagem citadina com as cores fortes de uma paixão guerreira que outras antes dela tinham sentido, muitas reprimido, quase nenhumas libertado. De vez em quando parava para impregnar um passeio, uma cadeira de esplanada, um banco de jardim, com o aroma forte da coleira. Ansiava pela captura.
No fim do dia ela já tinha chegado ao lado nocturno da cidade. Outras luzes, as mesmas regras. Olhou em volta e estremeceu.

22 comentários:

Anónimo disse...

Olá Minhas Senhoras e Senhor,

estas criaturas tem nomes? São poetas? (parecem não dizer nada de mundano e que estão irremediavelmente embrenhados numa espiral poética infernal...não falam como nós!) Não tem contas para pagar. beijins (menos para o Mário) estou a brincar eh eh eh :) estou a gostar de ler este drama darwiniano-beckettiano-baudelariano e h ehe h (não sei do que estou a falar)

Renata Correia Botelho disse...

Bem, e lá fugiu a nossa mulher-cadela-gata-gazela...
Onde estarão eles amanhã???
Um texto bem escrito, Leonor, como sempre. Agrada-me sobretudo a imagem dela a caminhar pelos baldios. Um dia, a este propósito, mostro-te um belo verso do José Tolentino Mendonça.

Renata Correia Botelho disse...

PS: perdoem-me, companheiros destas andanças, mas tenho de partilhar convosco que sinto alguma pena de se ter perdido o copo com veneno que a Rita introduziu... Também teria aberto, creio eu, hipóteses bem, bem interessantes!... Mas o jogo é este, não é? Há sempre uma infinidade de caminhos e a coisa vai rumando sem termos mão nela...

Su disse...

Belo o teu texto, como de costume, Leonor, que nos habituas tão bem! Gracias.
Quanto ao copo de veneno pode-se sempre voltar a ele...ou mesmo acabar aí. Mestre Nuno o dirá.
:o)

Renata Correia Botelho disse...

Ora nem mais, Susaninha! LOL!

Anónimo disse...

Leonor, minha cara, o texto está mt giro apesar de sentir alguma tristeza pelo desaparecimento abrupto do tal copo celestial. Gostei muito do "olhar ávido e húmido..." :)

leonor disse...

Grazie a tutti.
Também gostei da referência da Rita ao veneno e pensei em usá-la, mas achei que seria precipitado. Depois do texto da Susana, pareceu-me adequada uma fuga. Agora uma coisa é certa (sem querer influenciar quem vem a seguir - Maria, não leias mais!): eu gostaria de conhecer a reação do cidadão quando chegar a casa e ler o bilhete. O copo celestial continua lá, não? Por outro lado, o veneno é de que espécie? Enfim, sem querer desculpar-me, apenas pensando em voz alta, como poderia eu - pobre de mim- em poucas linhas agarrar em todas as pistas que foram para aqui lançadas? O conto ainda vai a meio. Muito veneno há-de correr. Mas é óptimo receber este feed-back, sugestões, advertências. Podíamos, de facto dar nomes aos jovens.
Mas isto já é tarefa para os próximos. Beijos.

Vitor Marques disse...

Muito bom.
Mas conseguirá ela fugir?

Anónimo disse...

sim, é vero, cara Leonor: teria sido impossível seguir todas as pistas...

rita disse...

uma rapariga distrai-se e, de repente, dá com uma animação fantástica nesta caixinha de comentários... boa!
depois de ler as referências feitas ao veneno, parece-me de dizer que a graça de serem contos escritos a tantas mãos são os diferentes ângulos por onde "puxam" os seguintes a partir das dicas que são deixadas.
pois que eu estou no meu cantinho a apreciar todos estes desenvolvimentos, à espera para ver se a miúda se vai encontrar ou ser encontrada ;)

Renata Correia Botelho disse...

Leonor, 100% de acordo!!! Tu muito fizeste! Aliás, eu sou sempre adepta de fugas... Deste ao conto, assim, um avanço bem interessante, de entre as inúmeras possibilidades. E a graça deste jogo está, precisamente, em sermos incapazes de agarrar todas as possibilidades!

Su disse...

Ohhhhhh!! Quis ir ver o link que o Vitor deixou mas já lá não tá nada!
:o(

Su disse...

Pois é Leonor, as babes estiverem a falar exactamente dessa hipótese de desfecho para o copo de veneno. Great minds think alike? lololol

Vitor Marques disse...

Susana pelo vistos o blogger não gostou do link.
Fica aqui o directo -> http://img.photobucket.com/albums/v506/VitorM/fuga.jpg

Vitor Marques disse...

Ooops! Esse também não dá.
este dá

Vitor Marques disse...

Sou muito teimoso.
Finalmente

Vitor Marques disse...

Desculpem a insistênciaTanta protecção para uma mera fotografia. Dasss

Maria das Mercês disse...

Bolas, já não pode uma pessoa fazer greve ao portátil! Chego aqui e vejo que msg, links e novos comentadores proliferam! E eu a perder isto! Chicote, chicote! Leonor, o teu texto está muito bom, mas... sobre o enredo que aí vem nada mais adianto.

Até porque ainda não escrevi. Eheheh...

leonor disse...

Ahahahah. Eis o exemplo do poder de uma vontade inquebrável sobre a inteligência artificial. Quem disse que as máquinas dominariam o mundo?

Su disse...

Pois e não é que ela foge mesmo? Gracias Vitor, esta imagem era mesmo importante que conseguissemos vê-la!

leonor disse...

Pués a mi me desgusta vos dar el desplacer de decir qué discuerdo de esta interpretación (pardon my French). O que me parece ver na imagem é ela a saltitar com alegria canina ao lado do dono. Só se ela aproveitar um momento de distracção dele para fugir é que a coisa poderá ser levada para essas bandas - mas é forçado! A pequena está feliz na caverninha, nem sabe o que é o amanhecer. Precisa de ler o nosso conto. eh eh eh
De qualquer forma, a imagem mantém a ligação deste exercício à realidade. Venham mais, Vítor.

leonor disse...

Só para concluir: a pergunta feita pelo Vítor continua pertinente - lá que ela corre, corre. "Mas conseguirá ela fugir"? Ou será capturada? Maria, todos os olhares se voltam para ti.