Espreito o corredor - vazio! Sigo até às escadas - ninguém! Paro à escuta - silêncio! O caminho está livre, como eu supunha. Desço-as devagar. Procuro a Avenida da Memória. Lá está ela: 5º degrau oeste. Sento-me no terceiro banco enquanto abro a embalagem de Happy Meal. Está a correr tudo confome o plano. Vejo a chave e a escada - óptimo! É daquelas desdobráveis que se arrumam em qualquer parte. Até numa embalagem de cartão! Sinto-me bem. Quase feliz. Mas elas começam a surgir. Cercam-me. Roubam-me ar, espaço e força. Não consigo mexer-me.
Alguém lhes deu o nome de recordações; umas cabras é o que são, a passear a estas horas na avenida. Nunca deixam um tipo em paz. Uma após outra, desfilam perante mim. Fecho os olhos, mas elas dominam-me. Mostram-se sem pudor. A mais sádica imobiliza-me. Sou de novo réu, horror e loucura. Protagonista de fugas impossíveis; primeiro, na categoria de evadido espontâneo, correndo na modalidade do atletismo paralisante; depois, procurando soluções mais refinadas (atirar-me da janela, balançar-me numa corda, deixar-me ir com a água do banho, enrolar-me nos pneus dos carros que nos visitam). Planos loucos (até para mim!) que nunca pus em prática porque nenhum me daria o que quero mesmo: uma mini e o desportivo. Quero ver-me subir em flecha. Cair com estrondo. Rolar na relva. Arrotar na esplanada. E voltar lá. Preciso de voltar lá.
Por isso gosto de aviões. O traço magenta que me espera lá fora empurra-me na direcção da porta. As cabras não querem deixar-me partir. Mas eu sou forte! Vou conseguir! Suporto a custo o gelo do suor enquanto abro o cadeado de ferro. Estou a tremer. Já está! Saio para o pátio. Elas tentam seguir-me, mas dão-se mal com o ar. Ficam para trás, as nojentas, encostadas aos vidros, desfiguradas no seu esgar de desespero.
Já oiço o barulho do avião, zumbindo numa pontaria de abelha só para mim. Sinto-me pólen. Quase mel. Afortunado. Quase feliz.
Encosto a escada ao muro. Subo-o depressa. Atrapalho-me com as mãos. Bato com a cabeça numa pedra. Escorrego com a breve tontura que me dá. Mas não desisto. É agora ou nunca. Consegui! Preparo-me para saltar, mas algo me detém. É a única recordação que não consigo vencer. Já há muito tempo que não a via, mas reconheço-a de imediato.
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6 comentários:
Adorei, Leonor. Rico e belo nas palavras, criativo no desenrolar da trama. Já conseguimos gostar da personagem outra vez, o que parecia impossível (lembram-se que a queríamos matar?!).
Cá está como, a sete mãos, se consegue dar a volta à coisa. Eu aprendi mais uma lição.
Gostei IMENSO!!! Um texto cheio de ritmo e imagens fortes, quase cinematográfico. E esta coisa de deixar a ponta do véu (do mistério) para a mão do dia seguinte tem realmente piada e parece-me que foi funcionando bem neste conto.
Maria... A chave de tudo está, afinal, nesta recordação...
Recordar: reviver: lembrar. Lá vou ter de conjugar esse verbo! Leonor, gostei mesmo muito do teu texto, da acção, da vivacidade e, claro, da personagem. Muito bem, como sempre! And I'll be back!
Sugeriu-me um amigo que vos acompanhasse. Tem sido, admito, um agradável exercício. Parabéns.
boa!Isso está a correr às mil maravilhas. A correr mesmo, com ritmo e enxuto de rodriguinhos.
Thanks to all!
Está a ser uma experiência muito positiva, não só em termos de produção como também de leitura. Como cada um de nós tem estilos diferentes, e não é sempre o mesmo a iniciar e a concluir os contos, é natural que cada um deles se revele também uma unidade de escrita bastante diferente das anteriores. Estamos, de certa forma, a reproduzir a lógica da vida: criamos um corpo, contribuimos para que ele cresça, mas nunca sabemos o que lhe irá acontecer no desenrolar do seu percurso. Por vezes, desvia-se do caminho que traçámos para ele; outras mantém-se no trilho. Mas sempre nos surpreende.
Maria, mal posso esperar para conhecer o desfecho desta fuga.
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