Godot abanava incessantemente o leque com a cara de Samuel bordada a ponto de cruz e Elton João aproveitava-se, esticando o pescoço para que a sua face fosse igualmente arrefecida. “Queres levar um estalo?” – questionou-lhe Godot com uma voz áspera. Elton ruborizou, esticou ainda mais o pescoço, quase colando o rosto ao do seu companheiro de viagem, e respondeu: “Quero! E depois dou-te a outra face!”
Com as botas enfiadas na cabeça e sentados com as pernas mergulhadas na banheira, lamentavam-se da pontaria que um pombo tivera horas antes. “Maldito táxi descapotável. E o pombo também não podia ter acertado só no teu chapéu?” – rabujava Godot, antes do cenário inspirar Elton, para dar a provar ao viúvo da própria prima mais um requentado episódio da sua vida:
“O vasto campo da Flandres iluminado pelo plúmbeo que encobria toda a abóbada celeste, as pernas afundadas na lama da trincheira, os pulmões invadidos pelo cloro que a máscara não detinha, a Lee-Enfield encravada, o estômago às voltas com uma qualquer mistela que tentava enganar a fome… E a pontaria daqueles estilhaços de granada a choverem-me sobre o capacete?”
O silêncio invadiu a casa de banho e o desdém apoderou-se de Godot que sentenciou: “Uma vida desinteressante vista pela lente de uma imaginação delirante.” O veredicto calou fundo em Elton, cujo choro até irritou o bebé do andar de cima, conhecido por berrar toda a santa noite.
As lágrimas ainda corriam abundantes rosto abaixo quando acordou sobressaltado de mais um sonho, com um toxicodependente a injectar a sua dose diária a partir da ponta do seu nariz. Levou lá a mão, mas falhou o mosquito. Do outro lado das gelosias, a discussão continuava acesa na mercearia do canto e poucos se conformavam com o facto do taxista ter sido multado, por estar a beber uma chávena de Pensal enquanto conduzia. “Será que ainda alguém arrisca vir cá?”
quinta-feira, 22 de maio de 2008
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